A desconsideração da personalidade jurídica e os aspectos trazidos pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019)
Antes mesmo da crise econômica trazida pela pandemia do Coronavírus, a situação das empresas brasileiras não era das mais favoráveis. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada dez empresas que iniciam suas atividades no Brasil, seis fecham as portas antes mesmo de completarem cinco anos de permanência.
Diante deste
cenário, não é de se surpreender que a insolvência das pessoas jurídicas seja
uma realidade cada vez mais presente no mercado.
Faz-se necessário
retomar o tema: a constituição de uma pessoa jurídica implica no nascimento de
uma personalidade própria, a qual se discerne da personalidade dos sócios.
O Código Civil, por
sua vez, traz o tema na redação do seu artigo 50. Com efeito, somente pode
haver a superação da personalidade jurídica quando obedecidos os parâmetros
estabelecidos pelo referido dispositivo, que pressupõe desvio de finalidade ou
confusão patrimonial, visando a coibir abuso por parte dos sócios e
administradores da sociedade empresarial.
O ordenamento
jurídico é objetivo ao impedir a responsabilização abusiva do sócio,
especialmente no que tange aos possíveis prejuízos aos terceiros de boa-fé, que
normalmente mantêm relações comerciais ou obrigacionais com a sociedade
empresarial de que participa o sócio, cuja responsabilidade, em princípio, é
limitada ao capital por ele integralizado.
Em se tratando de
iniciativa privada, é imperioso que para o deferimento da medida, os requisitos
sejam fielmente cumpridos. Caso contrário, diversas empresas seriam
desconstituídas sem qualquer embasamento jurídico, acarretando enorme
insegurança jurídica.
Nesse sentido, a Lei
n° 13.874/2019 foi sancionada com o principal objetivo de viabilizar o
livre exercício da atividade econômica e a livre iniciativa, deixando evidente
a intenção do legislador em garantir autonomia do particular para empreender.
Consequentemente, houve a restrição da atuação estatal sobre diversas
atividades econômicas.
Dentre as
modificações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica, foi alterada a redação
do supramencionado artigo 50 do Código Civil, trazendo o aprimoramento dos
critérios que possibilitam a desconsideração da personalidade jurídica.
Conforme dito, a
redação prévia do referido dispositivo determina que o credor de uma obrigação
assumida por uma empresa, visando a satisfação do crédito, poderia alcançar os
bens dos respectivos sócios, em caso de comprovação de confusão patrimonial ou
desvio de finalidade.
Entretanto, tal
texto não previa especificamente os conceitos das expressões “confusão
patrimonial” e “desvio de finalidade”, deixando a interpretação sob
responsabilidade da jurisprudência e da doutrina.
Assim resta
consignada na atual redação:
Art. 50. Em caso de abuso da
personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela
confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério
Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos
bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica
beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
- 1º Para os fins do disposto neste artigo,
desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de
lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
- 2º Entende-se por confusão patrimonial a
ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela
sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de
passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente
insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da
autonomia patrimonial.
- 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º
deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de
administradores à pessoa jurídica.
- 4º A mera existência de grupo econômico
sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não
autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
- 5º Não constitui desvio de finalidade a
mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica
específica da pessoa jurídica.
De acordo com a nova
lei, é suficiente a ação culposa de abuso da personalidade jurídica,
fundamentada na confusão patrimonial ou no desvio de finalidade para que seja
efetivada a desconsideração. Importantíssimo asseverar ainda, que a mudança do
artigo 50 do Código Civil evidenciou o propósito do legislador em tornar
necessária a demonstração do benefício auferido pelo sócio da empresa.
Em outras palavras,
o desvio de finalidade é caracterizado pela fraude e objetivo dos sócios em
prejudicarem credores. Noutro giro, a confusão patrimonial é, em suma, a
administração desastrosa, nos termos das hipóteses tipificadas nos incisos do §
2º do artigo 50.
Imperioso frisar que
o abuso da personalidade jurídica exige prova específica, sendo que meros
indícios de irregularidades não tem capacidade de ensejar a desconsideração. In verbis: “utilização da
pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos
ilícitos de qualquer natureza.”
Além disso,
observa-se a necessidade de comprovação de benefício efetivo do suposto abuso
praticado pelos sócios. Nesse sentido, importante frisar que a desconsideração
da personalidade jurídica não deve atingir necessariamente todos os sócios
indistintamente.
Sendo assim, a
solução principal prevista no ordenamento jurídico para a insolvência
empresarial não é a desconsideração da personalidade jurídica, e sim, a
Falência da sociedade devedora, no curso da qual, inclusive, poderá ser
realizada a apuração da responsabilidade dos sócios, consoante o disposto na
Lei 11.101/2005.
Neste ponto, em
específico, é nítido que o deferimento da desconsideração da sociedade é
exceção, devendo ser considerados, além dos requisitos expressos na redação do
artigo 50, o contraditório e a ampla defesa, carecendo de prova robusta e
incontroversa o ato de cometimento de ilícito pelo agente empresário.
Por fim, importa destacar que as mudanças legislativas trazidas pela Lei da Liberdade Econômica ofereceram o conteúdo normativo que carecia ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, concluindo que o mau uso deste instituto e a confusão patrimonial, não decorrem do simples inadimplemento das obrigações, mas da prova – efetiva e robusta – do voluntário e ilícito comprometimento social com a assunção de obrigações cujo objetivo se volte no claro sentido de fraudar os credores a benefício dos próprios sócios, desvirtuando, assim, a própria finalidade empresarial.
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