Companhia de teatro que ajuda moradores carentes na região da Cracolândia corre risco de ser despejada
Após um ano e meio de solidariedade, o teatro da Cia. Pessoal do Faroeste corre risco de despejo. No local são distribuídos cestas básicas para as famílias carentes da região
Há quase um ano e meio, a movimentação
na sede da Cia. Pessoal do Faroeste na região da Cracolândia, centro de São
Paulo, tem sido de famílias em busca de ajuda das campanhas #FomeZeroLuz e
#SopãodaLuz, que ajudam com cestas básicas os moradores do entorno.
Os recursos para essas doações vem do
trabalho da Cia por meio de lives com apresentações de música, teatro,
performances e entrevistas, eventos que, patrocinados pela Secretaria de
Cultura da Cidade de São Paulo tem gerado os recursos para pagamento do aluguel
e continuidade das ações de solidariedade. Contudo, a última dessas
transmissões ao vivo ocorreu em fevereiro deste ano e, desde então, o
secretário de Cultura da cidade de São Paulo, Alê Youssef cortou a verba desse
apoio. Como consequência, o espaço conta com três meses de aluguéis atrasados e
corre sério risco de despejo.
Em agosto do ano passado, o espaço já
havia recebido uma visita de um oficial de justiça com um aviso de despejo e o
prazo de 15 dias para desocuparem o imóvel. A ação chegou a dar início
efetivamente a um processo de desocupação no início de setembro, até ser
interrompido pela petição intermediada pelo gabinete do vereador Eduardo
Suplicy (PT). Na sequência houve uma audiência, e se chegou a um acordo pela
suspensão do despejo. .
“O combate à fome se tornou uma meta na
minha vida. Uma missão aceita. Trabalhando no meu território para amenizar a
fome de quem não tem nada, além de resgatar mais de 15 animais em situação de
abandono ou maus tratos - hoje dez cachorros e 13 gatos vivem comigo no teatro,
onde tenho conseguido manter as contas fixas e uma equipe mínima com o pouco
que arrecadamos quando aparece algum trabalho. Por vezes, bate um cansaço, não
dessas ações, mas por ter ainda que lutar contra essa ação de despejo que,
novamente, volta ao mesmo ponto. Bastava o Secretário de Cultura seguir
apoiando as lives que, em reunião com Eduardo Suplilcy, se comprometeu ajudar”,
desabafa Paulo Faria, diretor da companhia e idealizador da ação de
solidariedade.
História se repete
No início de 2019, o espaço da companhia
teatral já sofrera uma ação de despejo. Na época, houve uma mobilização da
sociedade na campanha #FicaFaroeste e foi realizado um acordo com o
proprietário e o pagamento realizado com recursos conseguidos pelo Programa
Municipal de Fomento ao Teatro.
“Naquela ocasião, praticamente todo o
dinheiro que recebemos do fomento foi utilizado para o pagamento dos aluguéis
atrasados. Conseguimos evitar o despejo, no entanto, como consequência não
contávamos mais com esse recurso para manter o espaço e as mensalidades
voltaram a se acumular”, recorda Paulo.
O diretor conta que, em 2020, não
conseguiram acesso ao fomento da prefeitura e com a paralização da programação,
o problema apenas cresceu e dívida acumulada com aluguéis atrasados chegou a R$
200 mil. “Em 2020, não tivemos nenhum apoio financeiro por meio do Fomento ao
Teatro, que é o que mantém a companhia em atividade. Nosso espaço é pequeno e
todos os espetáculos têm como bilheteria o sistema ‘pague quanto puder’. Em
março daquele ano, estreamos a peça ‘O Assassinato do Presidente’ que, devido a
recomendação de isolamento social, teve que ser interrompida depois de apenas
duas apresentações”.
Da quarentena à mudança definitiva para
dentro do teatro
Assim que teve início a recomendação do
isolamento social, o diretor
da Cia. Pessoal do
Faroeste tomou a decisão de cumprir sua quarentena dentro do
teatro. Seu propósito é acompanhar de perto as medidas de acolhimento que
seriam tomadas na região da Luz. Assim que identificou que as famílias em
situação de vulnerabilidade social estavam totalmente abandonadas, deu início
por conta própria a uma ação de solidariedade que conta com distribuição de
cestas básicas.
O que Paulo não imaginava é que a
experiência de viver dentro do teatro caminhava para se tornar definitiva.
Alguns dias antes do segundo aviso de despejo do teatro, em agosto de 2020, ele
recebera o mesmo aviso em seu próprio apartamento, no bairro da Santa Efigênia,
a algumas quadras da sede da companhia e da Cracolândia.
“Eu vivo do teatro, e assim como a
própria instituição Cia. Luz do Faroeste está sem recursos, o mesmo se reflete
na minha situação. Na época, também tentei negociar com o proprietário de todas
as formas mas não chegamos a um acordo que eu pudesse sustentar. Eu e meus
cachorros nos mudamos para dentro do teatro, adaptei um dos andares para
moradia”, conta.
#FomeZeroLuz e #SopãodaLuz
A campanha “FomeZeroLuz” tem como missão
erradicar a fome na região, que tem suas ruas, pensões e cortiços totalmente
ocupados por famílias em total vulnerabilidade, principalmente em um momento
como este. “Basta acompanhar a imprensa e as redes sociais que é possível
perceber como a situação fez aflorar o egoísmo e a intolerância em uma grande
parcela da população. Logo o Brasil que tem uma dívida enorme, escandalosa, com
a pobreza e o racismo, segue, descaradamente, fazendo jus a essa história tão
triste e revoltante”, diz Paulo Faria, idealizador da ação e que já tem um
histórico de trabalhos sociais na região onde, propositalmente, fica a sede de
seu grupo de teatro.
“Estão distribuindo cestas básicas no
teatro”, correu a notícia por todo o entorno e, em pouco tempo, já são mais de
mil famílias cadastradas, cerca de quatro a cinco mil pessoas, que estão colocando
alimento em suas mesas graças a companhia. Para se ter algum controle de que as
doações seguiriam realmente para o seu propósito, criou-se a regra de que
apenas as mulheres poderiam retirar os mantimentos (com algumas exceções
analisadas caso a caso). Moradoras de rua, prostitutas, travestis e viciadas
que, antes de qualquer rótulo, são em sua grande maioria mães.
A campanha foi ganhando apoio enquanto
Paulo divulgava cada passo da ação, e seus relatos quase como um diário, nas
redes sociais. “Foi por meio da internet que as pessoas conheceram nosso
trabalho, resolveram ajudar com suas doações e ajudando a divulgar a campanha.
A situação atual em que nos encontramos também comprova como cada centavo que
entrou como doação foi utilizado apenas na compra das cestas básicas”, conta
Paulo.
Com o passar do tempo as doações foram
diminuindo e, consequentemente, o número de cestas básicas e de famílias
assistidas pela campanha também. Até que, em julho deste ano, a companhia não
conseguiu arrecadar nenhuma cesta básica. A alternativa foi buscar pequenas
quantidades de alimentos, também com o apoio da sociedade e de empresários da
região, para preparar uma sopa que passou a ser distribuída todas as noites,
com exceções nos dias em que não conseguem coletar nenhuma doação, uma
ação que ganhou o apelido de #SopãodaLuz. Uma atividade que, muitas vezes,
Paulo realiza de forma solitária no fogão e na porta do teatro.
Em outubro, estreia a websérie “FOME”
Já está em fase final de edição os
episódios da websérie “FOME”. Uma produção viabilizada pela Lei Aldir Blanc
inspirada no processo de cadastro e atendimento às famílias do entorno da
Cracolândia na campanha #FomeZeroLuz e no enredo do espetáculo “Re-Bentos”, da
companhia. Todas as cenas totalmente gravadas com a câmera do telefone celular.
No elenco, um reencontro da atriz Mel
Lisboa e o ator Leonardo Miggiorin, 20 anos após contracenarem na série
“Presença de Anita”. Além deles, “Fome” conta com Thais Aguiar, Leona Jhovs,
Thais Dias, Danilo Miniquelli, Clodd Dias, Francisco Kokotch e Flávio Falcone,
nomes que já estiveram no palco da Cia. Pessoal do Faroeste.
Com estreia prevista para outubro, serão
20 capítulos de cinco minutos disponibilizados diariamente, de segunda à
sexta-feira, no canal da Cia. Pessoal do Faroeste no Instagram.
Sobre a Cia Pessoal do Faroeste
Em 2021 o Pessoal do Faroeste completou
23 anos. A companhia de teatro tem tido como fonte de pesquisa a vida social e
política do povo brasileiro por meio de seu imaginário popular e de sua
cultura, e com um olhar especial à cidade de São Paulo, especificamente o
centro, onde tem a sua Sede Luz do Faroeste.
Com o objetivo de realizar trabalhos
artísticos que reflitam momentos históricos da sociedade brasileira, a proposta
é produzir intervenções que valorizem a cidade, o centro de São Paulo e a rel
Santo Dias ação de pertencimento com a região. É nela que se desenvolvem os
projetos e a contribuição para o espaço urbano. A Cia Pessoal do Faroeste
ganhou o Prêmio Shell em 2014, na categoria Inovação pelo trabalho de ocupação
e intervenção social e artística que contribui para transformação urbana da
região da Luz. Em 2019, o diretor Paulo Faria recebeu da ALESP O 23o Prêmio
Santo Dias em Direitos Humanos.
Cia. Pessoal do Faroeste
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