Constituição ignorada, República deformada
*Samuel Hanan
A Constituição Federal deveria ser o
livro de cabeceira de todo cidadão brasileiro, consciente de sua cidadania e de
seus direitos e deveres. Basta ver sua introdução: “Nós, representantes
do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para
instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida na ordem interna e internacional, com a solução pacifica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte constituição da
República Federativa do Brasil.” Era como se uma nova nação estivesse sendo
fundada, porém o principal ficou somente no papel.
Em seu artigo 1º, parágrafo único, a
Constituição de 1988 estabelece que “todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes diretos ou indiretamente”. Entretanto, o que
constatamos? Grande parte dos políticos que nos representam se preocupam em
exercer o poder em nosso nome ou em seu nome particular? É verdade que aqueles
políticos que se beneficiam de seus cargos em detrimento dos eleitores estão
errados e não devem ser reeleitos. Contudo, nós eleitores também temos
responsabilidade porque muitas vezes nós os elegemos e os reelegemos. Ter
consciência e ficar indignado não são suficientes. É preciso ação, mobilização.
A opção por ficar silente não pode mais
ser admitida como simples omissão, porque se trata, na verdade, de
cumplicidade. E a esse respeito, a frase de Martin Luther King continua mais
atual do que nunca: “O que
mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos
desonestos, nem dos sem-ética. O que me preocupa é o silêncio dos bons”.
A Constituição também diz que “todos são
iguais perante a Lei”. Mas parece que alguns são mais iguais que os outros.
Basta perguntar: como é julgado o cidadão comum e como é julgado quem tem
direito a foro privilegiado? Um peso, duas medidas.
Há outros questionamentos necessários:
os governantes estão construindo uma sociedade livre, justa e solidária? Estão
garantindo o desenvolvimento nacional? Estão erradicando a pobreza e a
marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais? Estão
promovendo o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação? Deveriam, porque tudo isso são mandamentos
constitucionais, esculpidos nos artigos os 3º, 5º e 43º. E ninguém pode alegar
ignorância.
Quanto aos tributos, o descaso é igual.
A Carta Magna é bem clara em seus artigos 151 e 165. Proíbe a União de
Instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que
implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a
Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais
destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as
diferentes regiões do País. Exige o estabelecimento de plano plurianual projeto
de lei orçamentária acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre
as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios
e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia. Além disso, tudo
deverá ter entre suas funções a redução das desigualdades inter-regionais,
segundo critério populacional.
Nada disso é realidade. Para piorar, a
carga tributária foi elevada em cerca de 40% depois da Constituição de 1988,
sem que a população recebesse os benefícios correspondentes ao aumento da
arrecadação. Nossa população é vítima do gigantismo da máquina pública, pois
42% dos tributos arrecadados são destinados somente para pagar o funcionalismo.
Professores e profissionais do ensino, médicos, dentistas e todos os demais
profissionais da saúde, inclusive e com o destaque para enfermagem perdem
prestígio no serviço público. Parecem todos condenados à baixa remuneração, não
obstante o Brasil gastar cerca de 13,4% do PIB com servidores, muito mais que a
média (9,8%) dos 38 países membros da - Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Os serviços essenciais estão muito aquém
das necessidades nacionais. A educação pública é precária (como mostram os
índices mundiais), temos um déficit de 6 milhões de unidades habitacionais, as
grandes cidades enfrentam grave problema de favelização, e o saneamento básico
ainda é incipiente. Os índices de criminalidade dizem tudo sobre a segurança
pública e a saúde, apesar do excelente trabalho do SUS, comprovado durante a
pandemia, ainda não é satisfatória.
O Brasil é um País que arrecada muito e
gasta mal. Jamais será uma nação socialmente justa se insistirmos em não
cumprir o que manda a Constituição, ainda que ela não seja perfeita. É a
segunda maior do mundo – perde apenas para a da Índia – e a mais modificada de
nossa história, com 111 emendas em apenas 33 anos de vigência.
Há uma essência a ser observada e ela
está nos princípios da República, cujo aniversário acabamos de comemorar e que
precisamos resgatar com urgência. Com tantos privilégios para tão poucos, nos
encontramos hoje mais próximos da Monarquia politeísta do que da verdadeira
República. O Brasil necessita definir qual caminho quer seguir.
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**Samuel Hanan é engenheiro, empresário e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002).
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