A desigualdade no acesso a vacinas e o risco de prolongar a pandemia
Ana de Lemos
Diretora-executiva de MSF-Brasil
Dois anos depois do início da pandemia,
a maioria das pessoas sente que o pior já pode ter ficado para trás e que
caminhamos para uma situação de maior “normalidade”, embora mesmo este conceito tenha hoje
um sentido menos claro do que naquele passado que parece longínquo, de quando
começamos a sentir na prática os impactos da COVID-19.
Apenas no Brasil, são mais de 650 mil
mortes, quase 30 milhões de casos e consequências devastadoras para quem perdeu
entes queridos. Outros lidam com os efeitos de longo prazo da doença em sua
saúde física, ao mesmo tempo em que os impactos sobre a saúde mental são
difíceis de dimensionar, mas inegavelmente significativos.
Mesmo com todas essas ressalvas, se hoje
a nossa situação é consideravelmente melhor, isso se deve de maneira
preponderante à boa cobertura vacinal registrada no Brasil, já que a imunização
da população tem demonstrado ser um elemento essencial para o combate à
pandemia. Tínhamos no início de março um índice de pessoas totalmente vacinadas
na casa dos 75%, similar e até mesmo superior ao de alguns países de alta
renda.
Vemos, entretanto, uma quantidade enorme
de pessoas em países mais pobres que continua sem acesso aos imunizantes, o que
nos mostra que paralelamente à história de sucesso e triunfo tecnológico e
científico que permitiu o desenvolvimento de vacinas e medicamentos contra essa
nova doença em uma velocidade sem precedentes, ocorre também outra história,
mas de rotundo fracasso.
Cidadãos de países pobres simplesmente
têm tido negado seu acesso às vacinas. Na média, apenas 13,7% das pessoas de
nações de baixa renda receberam ao menos uma dose, segundo dados do site “Our
World in Data”, com os índices mais baixos na África, onde muitos países têm
cobertura inferior a 5%. Na América Latina, embora menos dramático, o quadro
também está longe do ideal, com alguns índices de imunização abaixo de 50%, o
que é preocupante.
Chama a atenção o fato de que essa
discrepância extrema parece não sensibilizar os tomadores de decisão ao nível
global, já que teve resultado frustrante a iniciativa de tentar promover uma
distribuição mais equânime de vacinas por meio do Covax, um mecanismo
multilateral que tem entre seus membros a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em contraste, o que se viu foram os países ricos correndo para realizar
encomendas aos grandes laboratórios e garantir para si mais doses do que
realmente necessitavam, produzindo cenas de estoques vergonhosamente vencidos e
desperdiçados, enquanto países pobres seguiam sem acesso.
Além disso, esforços para permitir a
suspensão temporária de direitos de propriedade intelectual no âmbito da
Organização Mundial do Comércio (OMC), em debate há mais de um ano, têm
esbarrado na resistência de alguns países ricos, particularmente da União
Europeia. Novos remédios, eficientes para o tratamento da doença, são
comercializados a preços proibitivos e seguem protegidos por patentes,
inacessíveis para a maioria dos pacientes que deles necessitam.
A verdade é que a negativa em promover
um acesso mais equânime a vacinas e tecnologias médicas contra a COVID-19 é um
potente combustível para um risco que é claro e pode ter consequências não
somente para os mais pobres, mas para todos: a atual desigualdade alimenta
bolsões de perpetuação da pandemia, abrindo caminho para o desenvolvimento de
novas variantes, com efeitos imprevisíveis mesmo sobre quem está
vacinado.
Infelizmente, o Brasil não está tão
distante deste risco como poderia parecer para quem visualiza nossos dados de
cobertura vacinal. Em nosso país, as disparidades de alguma forma espelham as
desigualdades regionais, com o Nordeste e, mais fortemente, o Norte, como as
regiões onde a cobertura vacinal precisa ser mais aprimorada. Os sete estados
da região Norte estão entre as oito últimas posições do ranking de cobertura
vacinal, no qual se inclui também o Maranhão. De acordo com dados desenvolvidos
pela plataforma Rede Análise COVID-19, esses estados possuem menos de 62% da
população vacinada com duas doses (ou dose única). Em contrapartida, o estado
de São Paulo chegou a mais de 80% da sua população vacinada com duas doses (ou
dose única).
Um dos Estados do Norte onde o problema
é mais significativo é Roraima, com pouco mais de 60% da população totalmente
vacinada. Em algumas áreas do interior do Estado, entretanto, este índice chega
a cair para cerca de 40%.
Temos observado essa realidade de perto,
já que MSF mantém desde o final de 2018 um projeto direcionado principalmente a
prestação de cuidados de saúde ao grande número de migrantes venezuelanos que
chegaram a Roraima. Iniciadas na capital, Boa Vista, as atividades médicas, de
saúde mental e promoção de saúde foram no ano passado expandidas para
Pacaraima, cidade na fronteira com a Venezuela que geralmente é o ponto de
ingresso dos migrantes ao Brasil.
Embora não estejamos envolvidos
diretamente na vacinação contra a COVID-19, temos colocado em prática ações
para tentar impulsionar o aumento da imunização no Estado. O que observamos é
que as causas da chamada hesitação vacinal são múltiplas, e temos tentado endereçá-las
em nossas ações de promoção de saúde.
Nossa principal ferramenta neste caso
são informações corretas, em contraponto ao desconhecimento e à disseminação de
notícias falsas que tentam desacreditar ou mesmo atribuir riscos inexistentes
aos imunizantes e atingem de igual maneira à população local e aos
migrantes. Em relação aos venezuelanos, uma de nossas mensagens mais
importantes é informar aos migrantes o seu direito de acessar o sistema público
de saúde no Brasil, por meio do cartão SUS, e consequentemente, de vacinar-se.
No contexto nacional, temos de ficar
atentos ao aumento sazonal de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave, que
deve atingir algumas regiões do Brasil nos próximos meses. Estamos agora na
queda da onda ocasionada pela variante Ômicron, mas a cobertura vacinal
insatisfatória em algumas regiões do país é um fator que deveria motivar ações
do poder público para endereçar de maneira efetiva o problema.
No âmbito político, temos um enorme
avanço potencial se o Congresso brasileiro derrubar vetos do Executivo à lei
14.200/21, que em sua versão originalmente aprovada no ano passado pelas duas
Casas facilita a suspensão temporária de patentes para tecnologias médicas
durante emergências de saúde. Se o Congresso recuperar o espírito original da
lei, a medida poderá ser aplicada imediatamente, abrindo caminho para que o
Brasil assuma a vanguarda na superação das desigualdades e melhore o acesso a
tratamentos de Covid-19, ainda deficiente no país, permitindo que olhemos com
mais esperança para o horizonte ainda incerto desta pandemia.
Com atividades iniciadas em abril de 2020, MSF respondeu durante um ano e meio à emergência da COVID-19 no Brasil, na maior operação de emergência desde o início da atuação da organização no país, há mais de 30 anos. Em distintos momentos, ações ocorreram em 12 estados. A assistência médica foi oferecida em todos os níveis, assim como foi fornecido apoio de saúde mental a pacientes e pessoal de saúde. Também foram ministrados treinamentos para aprimoramento de protocolos e fluxos de pacientes. Adicionalmente, foi dada ênfase especial ao engajamento comunitário, com atividades de promoção de saúde e diagnósticos. MSF também tem dado assistência à população de migrantes e refugiados no estado de Roraima desde 2018.
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