"Burnout" e Assédio Moral
Estevam Vaz de Lima*
Conforme exponho em meu livro “Burnout:
a doença que não existe”, o número de problemas com a noção de burnout é
tamanho que torna-se difícil fazer uma lista deles. Uma lista pressupõe a
citação de itens, um por um, dispostos linearmente ou em colunas. Ocorre que as
inconsistências e absurdos da noção de burnout são de tal modo imbricadas umas
com as outras, que seria mais preciso falar em um emaranhado do que em uma
lista. Imagine um emaranhado de linhas. Você consegue perceber que é um
emaranhado, mas é impossível entender como se dão os nós ali dentro. É o caso
do burnout, a que me refiro como “um estado de confusão”.
Neste artigo, não vou me estender sobre aspectos
mais amplos e gerais do “burnout” – por exemplo, que é o maior desserviço para
a Medicina e para a opinião pública dos últimos 50 anos, só competindo com as
malfadadas “personalidades múltiplas” da psiquiatria americana; ou que é uma
“síndrome” com 140 sintomas, que se confunde com ao menos trinta categorias
diagnósticas da psiquiatria e com centenas de experiências comuns da vida em
geral, cabendo tudo no saco sem fundos da alegada “doença”. (A síndrome das
“personalidades múltiplas” fez mais sucesso que o burnout e permaneceu nos DSMs
– o sistema classificatório americano – por décadas, até que se revelasse uma
grande farsa. Para quem quiser ter uma ideia de até que ponto pode chegar a
credulidade humana na área dos transtornos mentais, sugiro assistir ao
documentário “As 24 personalidades de Billy Milligan”, da Netflix).
Assim, hoje apresentarei questões
relativas a burnout e assédio moral.
É frequente a ideia de associação entre
os dois fenômenos, seja feita por profissionais ou leigos, que imaginam e mesmo
publicam sua suposição de que uma pessoa que sofreu assédio moral acabe por
desenvolver “burnout” – entre aspas, pois é impossível realizar objetivamente o
diagnóstico médico dessa inexistente “doença”.
“Burnout” não só não tem nada a ver com
assédio moral, como são conceitos antagônicos e mutuamente excludentes, pois o
primeiro diz respeito a um problema individual e o segundo remete o assunto
para questões organizacionais. Não há uma só linha nos principais teóricos do
“burnout” que inclua o assédio moral como um fator causador dessa “síndrome”.
No Brasil, entretanto, há autores que associam uma coisa com a outra e não é
difícil entender porque façam isso, dado que cabe tudo e sempre um pouco mais
nas “teorias” sobre burnout.
Um trio de médicos americanos parece ter
se dado conta da incompatibilidade entre os dois fenômenos e publicou um
interessante artigo onde deixam isso claro. Intitulado “Porque burnout é o nome
incorreto para o sofrimento do médico”, dizem, entre outras coisas: “O termo
burnout sugere [...], em essência, que o problema reside no indivíduo que, de
alguma forma, está falhando. Os médicos consideram seu
trabalho desafiador, mas acreditamos que
“burnout” é uma deturpação. [...] Acreditamos que os médicos não estão burned
out, mas sofrendo danos morais. [...] O dano moral localiza a fonte de
sofrimento, apropriadamente, fora do médico e dentro da própria estrutura de
negócios da saúde.” (Dean, W., Dean A. C. &Talbot, S. G., 2019. “Why
‘Burnout’ is the Wrong Term for Physician Suffering” www.medscape.com/viewarticle/915907).
Fica evidente que o “burnout” – que
esses autores também colocam entre aspas – mais esconde do que revela as causas
do sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, sobretudo se considerarmos que
o assédio moral é uma das principais, senão a principal causa de adoecimento
mental relacionado ao trabalho. Vale considerar, ainda, que os argumentos
apresentados nesse artigo aplicam-se a qualquer organização, seja relacionada a
trabalhadores da área da saúde ou não.
Concluindo: como no saco sem fundos do
burnout cabem 140 sintomas, cerca de 30 categorias diagnósticas da Psiquiatria,
24 doenças gerais e centenas de experiências comuns do dia a dia que não
caracterizam nenhum transtorno mental, o assédio moral vai junto, também, para
dentro desse saco sem fundos.
*Estevam Vaz de Lima é médico pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP); psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação Médica Brasileira e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise/International Psychoanalytical Association. Autor do livro "Burnout: a doença que não existe"
Nenhum comentário