Novas e velhas questões sobre a admissibilidade do recurso especial
*José Miguel Garcia Medina
O recurso especial é recurso de cabimento
restrito e de fundamentação vinculada. Suas hipóteses de cabimento encontram-se
expressamente previstas no artigo 105, inciso III da Constituição Federal. Ao
julgar o mérito desse recurso, o Superior Tribunal de Justiça ocupa-se com a
definição da inteligência da norma federal infraconstitucional, realizando
função conhecida como nomofilácica, e, sendo o caso, desempenha também a função
"dikelógica", julgando o caso concreto. No ponto, o recurso especial
assemelha-se ao recurso extraordinário, dirigido ao Supremo Tribunal Federal,
sendo este ligado à norma constitucional federal.
De certo modo, com a Constituição
Federal de 1988 esses dois recursos nasceram como "irmãos". As várias reformas constitucionais e o intenso e criativo
labor jurisprudencial realizado pelo Supremo Tribunal Federal fizeram com que
esses recursos fossem se distanciando, em vários pontos, embora ainda
remanesçam muitas semelhanças entre eles. Dentre elas, talvez a que mais chama
a atenção de quem diariamente labuta com esses meios de impugnação consista no
rigor formal a ser observado em sua confecção.
Há requisitos que decorrem da própria
natureza de tal espécie recursal. A exigência de prequestionamento, por
exemplo, é intrinsecamente ligada à razão de ser desses recursos. Com efeito,
não se discutindo sobre o sentido da norma federal na decisão proferida pelo
tribunal de origem, não se justifica a atuação da corte superior.
Outros requisitos, no entanto, não se
justificam.
Por exemplo, o artigo 1.035, § 2.º, do
Código de Processo Civil de 2015, diversamente do que o fazia o artigo 543-A, §
2.º, do Código de 1973, não mais impõe que a repercussão geral da questão
constitucional seja demonstrada pela parte em preliminar do recurso
extraordinário, mas o Supremo Tribunal Federal continua a exigi-lo. Trata-se,
aliás, de algo previsto no Regimento Interno do Supremo (cf. artigo 13, inciso
V, alínea "c", na redação da Emenda Regimental 54/2020, que
textualmente considera "manifestamente" inadmissível o recurso extraordinário
que não contenha "preliminar formal e fundamentada de repercussão
geral"). Enquanto não sobrevém reforma regimental e giro na jurisprudência
do Supremo a respeito, resta às partes tomar cuidado redobrado, alegando a
matéria em preliminar, e não apenas no corpo das razões recursais.
Voltemos nossa atenção ao recurso
especial.
O Superior Tribunal de Justiça concluiu
importante julgamento no dia 20/4/2022, aprovando orientação que vem sendo
anunciada como uma mitigação do formalismo exigido para a admissibilidade do
recurso especial. A decisão, proferida pela Corte Especial do tribunal, se deu
no julgamento dos embargos de divergência em agravo em recurso especial
(EAREsp) nº 1.672.966, opostos contra acórdão proferido pela 4ª Turma do
tribunal.
Em reiteradas decisões, manifestava-se o
tribunal superior no sentido de que "a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta que, na interposição do
recurso especial, com fundamento no artigo 105, inciso III, da Constituição
Federal, é preciso particularizar a alínea do dispositivo constitucional em que
está fundado o recurso", e que "a falta desse pressuposto
configura deficiência de fundamentação, inviabilizando o conhecimento do
recurso especial, ante a incidência da Súmula 284 do STF por analogia" (AgInt
no AREsp 1.817.491, citado aqui apenas a título exemplificativo). Nos embargos
de divergência acima referidos, a parte embargante requereu a aplicação desse
entendimento para que o recurso especial interposto não fosse admitido.
O julgamento dos embargos de divergência
pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça teve início em 1/9/2021.
Num primeiro momento, a relatora, ministra Laurita Vaz, manifestou-se no
sentido de que, se as razões recursais demonstram, de forma inequívoca, o
cabimento do recurso, segundo os casos previstos na Constituição Federal, "dispensa-se a indicação expressa
da alínea do permissivo constitucional em que se funda o recurso especial,
mitigando o rigor formal, em homenagem aos princípios da instrumentalidade das
formas e da efetividade do processo, a fim de dar concretude ao princípio
constitucional do devido processo legal em sua dimensão substantiva de
razoabilidade e proporcionalidade" (transcrevo aqui a
partir do vídeo do julgamento, disponível aqui, já que o inteiro teor do
acórdão, até o momento da publicação do presente texto, ainda não foi
publicado).
Esse entendimento, de fato, significaria
uma evolução da jurisprudência do Tribunal em relação àquela orientação mais
restritiva, indicada acima. No entanto, após intenso debate, acabou
prevalecendo a seguinte orientação (que transcrevo a partir do vídeo da 2ª
parte do julgamento, realizada em 20/4/2022, disponível aqui): "A falta de indicação expressa da
norma constitucional que autoriza a interposição do recurso especial (alíneas
'a', 'b' e 'c' do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal) implica o
seu não conhecimento pela incidência da Súmula 284 do STF, salvo, em caráter excepcional,
se as razões recursais conseguem demonstrar, de forma inequívoca, o seu
cabimento".
Vê-se, assim, que, como regra,
continua-se a exigir a indicação da
alínea do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal em
que se funda o recurso especial. Por exemplo, não basta alegar que a decisão
recorrida viola algum artigo do Código Civil, mas é necessário apontar que o
recurso se assenta na alínea
"a" da referida disposição constitucional. Ainda,
não é suficiente alegar que o acórdão recorrido adotou solução distinta da
acolhida por outro tribunal, sendo necessário deixar expresso que o recurso
especial se justifica com base na alínea
"c" do inciso III do artigo 105 da Constituição
Federal. Essa é a regra geral, segundo se decidiu, só podendo ser deixada de
lado "em caráter
excepcional, se as razões recursais conseguem demonstrar, de forma inequívoca,
o seu cabimento".
Interessante notar que já havia decisões
apontando no sentido de que essa exceção poderia vir a tornar-se regra, e o
acórdão proferido pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, mantido pela
Corte especial por ocasião do julgamento dos embargos de divergência, já
parecia se inspirar em novos ventos, soprados, inclusive, pelo Código de
Processo Civil de 2015. Consta da fundamentação do acórdão (íntegra
disponível aqui):
"A agravante sustenta, em síntese,
que a decisão agravada não observou a orientação do AgRg nos EAREsp 278.959/MG (relator
ministro Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 6/4/2016, DJe 6/5/2016) e
não aplicou o entendimento consolidado no enunciado nº 284 da Súmula do STF,
bem como que a ora agravada não demonstrou o dissídio jurisprudencial em seu recurso
especial. Em primeiro lugar, com relação ao citado precedente da Corte
Especial, cumpre observar que se trata de julgamento de recurso interposto na
vigência do CPC/1973, enquanto o caso dos autos trata de especial interposto
quando em vigor o CPC/2015. A ora agravante deveria ter fundado sua alegação em
precedente da Corte Especial decidido à luz do CPC/2015 e submetido a amplo
contraditório — o que não ocorreu. [...] De outro lado, quanto à aplicação da
Súmula n. 284
do STF ('É
inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua
fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia'), reitero que o especial foi
suficientemente fundamentado, tendo argumentado a recorrente, ora agravada, que
o acórdão recorrido teria violado o § 2º do artigo 1.018 do CPC/2015 e
divergido de julgados desta Corte Superior. Com efeito, os argumentos
formulados permitiram a plena compreensão da controvérsia e da alegação de
violação da lei federal. Lembre-se, aliás, que fundamentação sucinta não se
confunde com ausência de motivação. Nesses termos, irretocável a decisão que
afastou a aplicação da referida súmula do STF".
Vê-se que, embora essa decisão tenha
sido mantida, sua ratio não
se coaduna com manifestada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça,
na decisão acima proferida. A exigência de indicação da alínea do inciso III
do artigo 105 da Constituição Federal, assim, continua a ser formalidade a ser
observada como regra pela
parte em suas razões de recurso especial, só podendo ser dispensada "em
caráter excepcional". Esta exigência, aliás, encontra-se presente também
no artigo 321, caput,
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (na redação da Emenda
Regimental 12, do longínquo ano de 2003).
A meu ver, e ao contrário do que muitos
têm afirmado, a orientação que acaba de ser manifestada pela Corte Especial do
Superior Tribunal de Justiça não significa efetivo avanço em relação àquela
tendência mais restritiva. Ao contrário, essa orientação é, agora, enfatizada como regra
geral. Espero que a Corte Especial tenha oportunidade de se manifestar
novamente sobre o tema, deixando de lado essa formalidade, que, como apontou a
4ª Turma da corte ao proferir o acórdão que restou mantido, é desnecessária e
incompatível com o Código de Processo Civil de 2015.
*José Miguel Garcia Medina é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.
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