Cartilha sobre aborto desinforma e provoca medo nas vítimas, diz jurista
Mestre em Direito Penal esclarece que existe,
sim, aborto legal, e aponta equívocos presentes em documento do Ministério da
Saúde
Uma nova cartilha
elaborada pelo Ministério da Saúde afirma que não existe aborto legalizado no
Brasil e que, portanto, toda prática de aborto constitui crime. "Não
existe aborto legal. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude.
Quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação
policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco
materno", diz o texto da cartilha.
O texto indica que
mulheres que invocarem o direito legal para realizar o procedimento serão
investigadas pela polícia. A jurista
e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles, do Escritório Valles &
Valles, explica que quando qualquer pessoa denuncia um
crime, todos os envolvidos no fato são investigados. “A polícia verifica todas as informações
de todos os envolvidos, mas isso não quer dizer que as vítimas serão tratadas
como suspeitas em investigações de estupro", diz.
O aborto para vítimas de estupro é legalizado
no Brasil
Quando uma mulher é
violentada e procura atendimento médico, o fato já é comunicado à polícia, que
elabora um boletim de ocorrência. A vítima passa por exames de corpo de delito
para coletar vestígios e resíduos que permitam a futura identificação do
criminoso. “Esse boletim
de ocorrência vira um inquérito policial porque estupro é um crime de ação
penal pública incondicionada, não depende de representação da vítima. Mesmo que
ela não queira dar continuidade a essa investigação, isso não a impede de ter o
direito de abortar”, completa a advogada.
Mesmo quando a vítima
de estupro não denuncia o crime e descobre a gravidez posteriormente, afirma
Jacqueline, ela também tem direito ao aborto. “Só que quando é iniciado o processo para a realização do
aborto, é feita a investigação. Mas não é a mulher que é investigada e, sim, a
autoria do crime. Ainda assim a vítima não precisa que a investigação seja
concluída para que ela tenha direito a realizar o procedimento previsto na lei.
A cartilha do Ministério da Saúde mais confunde que explica e tem um jogo de
palavras que gera desinformação e pode desestimular ainda mais as denúncias de
estupro, um crime que já é subnotificado no Brasil”, afirma.
Dados do Ministério da
Saúde divulgados na imprensa mostram que, entre janeiro de 2021 e fevereiro
deste ano, foram realizados 1.823 procedimentos de aborto autorizados por lei
no Brasil.
A advogada criminalista
esclarece que todo aborto feito dentro das regras da legislação é legal. “O aborto no Brasil é legalizado em três
circunstâncias: duas estão no Artigo 128 do Código Penal – estupro e risco à
vida da mãe; e uma é jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) – fetos
anencéfalos. Então esse jogo de palavras usado na cartilha não corresponde à
realidade. Só serve para confundir e vitimizar ainda mais as mulheres”,
explica.
A jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline
Valles
Estupros
Em 2021, o
Brasil registrou 56.098 estupros de mulheres. A cada 10 minutos, uma mulher foi
violentada. E, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ainda há uma
subnotificação considerável no registro dos casos.
Os dados revelam que durante a pandemia (entre março de 2020 e dezembro de 2021) houve um aumento significativo dos casos de violência sexual contra meninas e mulheres, chegando a um total de 100.398 registros. “As vítimas precisam se sentir seguras e acolhidas para denunciar os crimes. Espalhar desinformação contribui para que crimes e criminosos não sejam investigados e permaneçam impunes. A sociedade, os entes jurídicos e o governo têm que garantir que as vítimas tenham segurança para denunciar e recebam o acolhimento necessário em um dos momentos mais difíceis das vidas dessas mulheres”, finaliza a jurista.
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