Como nasceu a depressão e como surgiram os tratamentos para o problema que só cresce em todo o mundo
Novo modelo de tratamento, a cetamina é a única capaz de reduzir e eliminar pensamentos de autoextermínio e autoagressão em horas após o uso
*Tiago Gil
Tudo que fazemos, dentro e fora da ciência,
passa por modelos teóricos. Olhamos a realidade à nossa volta, interpretamos e
tentamos explicar, por meio de um modelo construído pela nossa imaginação.
Levantamos hipóteses, testamos, encontramos erros e voltamos e refazemos nosso
modelo. Os modelos que melhor preveem a natureza, sobrevivem, os modelos que se
mostram falhos, são substituídos. Essa é a base do método científico, pensamento, se não criado, aprimorado, pelos pensadores clássicos como René Descartes,
Isaac Newton e Francis Bacon.
Com a medicina não é diferente. Criamos modelos teóricos que podem vir pela observação direta - ao
microscópio – ou pela dedução de fenômenos analisados. Ao olhar um paciente com dor no
fêmur, de início repentino, após uma queda de motocicleta, deduzimos ser fratura e a observação direta da
fratura pelos raios-x comprovam a hipótese
e é instituído
o tratamento.
E se o tratamento levasse à dedução da causa?
Podemos falar que foi isso o que aconteceu,
ao longo dos anos, ao que se refere à depressão. Medicações criadas para uso em anestesia, como
calmantes, ajudaram pessoas internadas com crises de ansiedade e agitação. O
modelo teórico, que explicaria a depressão, começou com a observação do efeito colateral da iproniazida,
um antibiótico para combater a tuberculose no início da década de 1950. O efeito colateral foi elevação
o humor, ganho de peso e melhora do sono. Com essa observação, o termo
antidepressivo foi criado pelo psiquiatra Max Lurie.
Ao investigar o antituberculoso, para
entender qual fator causou a elevação do humor, descobriu-se que o medicamento
bloqueia a enzima que degrada as monoaminas, conjunto de proteínas que servem
de neurotransmissores – serotonina,
dopamina e noradrenalina. Desta forma, o modelo teórico que explica a depressão estava criado.
Como o antibiótico aumentou a quantidade de
neurotransmissores (setotonina, dopamina e noradrelina) entre os neurônios, os
pesquisadores pensaram que, nas pessoas com depressão, deve faltar estas
subestâncias. Esse é o modelo
criado no início dos anos 50 nos Estados Unidos, o modelo monoaminérgico da depressão. A
partir deste ponto, a indústria farmacêutica começou a sintetizar diversas medicações que bloqueariam
especificamente e seletivamente a enzima monoaminaoxidase, que degrada as
monoaminas – serotonina, dopamina,
noradrenalina.
Esse modelo teórico existe e é o padrão para
explicar a depressão, "desbalanço" das monoaminas. Esse modelo foi
importante também por mostrar
um “desbalanço químico” da depressão, e
não somente uma falha moral.
Hoje temos diversas medicações que atacam o
problema em suas especificidades. Um tipo dessas medicações antidepressivas são
os inibidores seletivos da recaptação da serotonina, I.S.R.S., eles aumentam a
serotonina no cérebro como a
fluoxetina, sertralina ou escitalopram. Temos os inibidores duais, que inibem a
recaptação de serotonina e noradrenalina como a venlafaxina ou a bupropiona,
dopamina e serotonina. Todos trabalham sobre o mesmo modelo e conseguem ajudar,
segundo o estudo STAR-D (estudo que tinha como principal foco a avaliação da
resposta antidepressiva de medicamentos no mundo real, fora das pesquisas), 70%
das pessoas com depressão ao longo do tratamento. Essas medicações começam a
apresentar alguma melhora do quadro após 4 a 6 semanas do uso.
O modelo monoaminérgico foi colocado à prova de outras formas,
não somente observando-se o efeito. Investigou-se o cérebro de pessoas que
morreram por suicídio ou no líquido cerebral de pacientes deprimidos,
procurando o aumento ou redução destas monoaminas. Surpreendentemente os
resultados não são sólidos e constantes como poderíamos deduzir. A elevação das
monoaminas no cérebro ocorre
dias após o inicio das medicações, mas o efeito clínico demora semanas e
esse é apenas
uma das falhas no modelo monoaminérgico.(1)
O modelo descrito nunca foi unanimidade na
comunidade científica. Outros pesquisadores, notando as falhas,
elaboraram outros modelos para explicar a depressão, como modelos de excesso ou
falta de hormônios ou de proteínas mensageiras do crescimento de neurônios.
Um dos modelos é o chamado glutamatérgico(2), que tenta explicar a causa da
depressão pelo excesso de glutamato em diversas regiões do cérebro. O glutamato é um
neurotransmissor excitatório do cérebro. Não o único, mas a principal proteína que, ao ser recebida
por um neurônio, o ativa a mandar o impulso elétrico adiante.
Ele se opõe ao GABA, por exemplo, outra
proteína que estimula o “desligamento” do neurônio que o recebe.
Essa é a base
dos calmantes.
O desenvolvimento do modelo glutamatérgico se desenvolve pela observação de cérebros de pessoas que
morreram por suicídio ou com depressão grave, que apresentam um aumento de
glutamato em algumas áreas do cérebro e uma redução desse neurotransmissor em outras
áreas, em relação às pessoas sem essa doença. Elegante modelo, não? Desbalanço químico, mas de
outra natureza, não mais de monoaminas e sim de glutamato.
Na universidade de Yale, a equipe do
pesquisador John Krystal, em 2000, resolveu testar essa hipótese glutamatérgica da depressão e decidiu
que, para testar, iria impedir o glutamato de exercer sua atividade, bloqueando
o local no qual o glutamato se liga na célula, o receptor n-metil-d-aspartato - NMDA.
Escolheram 10 pessoas com depressão
resistente ao tratamento com modeladores de monoaminas, realizaram uma infusão
endovenosa de um agente que bloqueia o receptor NMDA e observaram estes
pacientes logo após terem recobrado os sentidos e durante uma semana.
Escolheram o fármaco mais conhecido, prático e
já descrito para esse bloqueio, a cetamina, um
anestésico em uso
desde 1970, com grande conhecimento e experiência em cirurgias e sedação.
Surpreendentemente, dos 10 testados, 30%
obtiveram resposta antidepressiva em algumas horas, que perdurou por sete dias,
o tempo do estudo. Novas pesquisas nos ensinaram outras maneiras de utilizar a
cetamina como antidepressivo. E, atualmente, os estudos mostram que uma série de seis infusões
endovenosas de cetamina produzem alívio na depressão de 75% das pessoas que não
conseguiram resposta positiva com medicação oral.
Descobriu-se também um efeito único e extraordinário: a
cetamina foi a única medicação até o momento
capaz de reduzir e eliminar pensamentos de autoextermínio e autoagressão em
horas após o uso. Não existe outra medicação, ou outro modelo teórico, que seja
capaz deste feito na proteção da vida.
Assim nasceu a maior revolução da psiquiatria
desde a iproniazida. Consolidou a hipótese glutamatérgica da depressão como uma hipótese plausível e desde
então a cetamina é utilizada como antidepressivo, principalmente nas pessoas em que a medicação oral não trouxe
alívio. A indústria tenta repetir o sucesso dos antidepressivos baseados em
monoamina e quer encontrar outros compostos, mas desta vez com patente, que
utilizem o mesmo modelo teórico da cetamina para tratar depressão. Até o momento, que tenha sido publicado e seja de
conhecimento público, 13 compostos foram tentados, nenhum com sucesso, eficácia
e segurança que a cetamina se mostrou.
Esse novo modelo também não explica a totalidade dos fenômenos
observados, ajeita algumas falhas e mostra uma eficácia maior do que o modelo
antigo. Mas há ainda pessoas que não conseguiram resposta positiva com ele.
Ou seja, este modelo ainda não está perfeito,
mas chegaremos lá. Um modelo invalida o outro? Provavelmente os dois estão
errados se soubéssemos a “verdade pura” e provavelmente a verdade está
de uma maneira muito mais complicada do que podemos imaginar neste momento,
mas é possível garantir que passa pelo glutamato.
Ao inaugurar um novo modelo teórico,
inaugura-se uma nova era no entendimento e tratamento da depressão. A cetamina
será o único agente capaz de atuar sobre o glutamato e tratar a depressão?
Existem outros. Alguns já descobrimos, outros vamos descobrir utilizando o método cientifico de
observação e dedução.
Referencias
1.
Lopez-Munoz F, Alamo C. Monoaminergic Neurotransmission: The History of the
Discovery of Antidepressants from 1950s Until Today. Curr Pharm Des.
2009;15(14):1563–86.
2.
Thompson SM, Kallarackal AJ, Kvarta MD, Van Dyke AM, LeGates TA, Cai X. An
excitatory synapse hypothesis of depression. Trends Neurosci. 2015;38(5):279–94.
*Tiago Gil é médico anestesista, fundador do Centro de Cetamina, membro ativo da ASKP3, American Society of Ketamine Physicians, Psychotherapists & Practitioners, pesquisador voluntário do IPq, interessado em anestésicos com ação antidepressiva rápida
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