Há inflação em tudo que vejo...
Por Luis Otavio Leal*
A música “Flores”, dos Titãs, fala que
“há flores por todos os lados, há flores em tudo que eu vejo”. Bom para os
Titãs porque, no mundo dos banqueiros centrais, as únicas coisas vistas são
pressões inflacionárias por todos os lados.
Afora todas as perdas humanas, a doença
trouxe uma desorganização nas cadeias produtivas que parece longe de acabar. Na
verdade, as coisas parecem que estão se somando em vez de se subtraindo. Um
exemplo mais direto é a questão da variante Delta, que pegou de forma mais
forte os países do Sudeste Asiático que passaram relativamente imunes à
primeira onda, como a Malásia e o Vietnã. Isso poderia ser apenas um problema
de saúde pública local, mas o mundo descobriu que boa parte das peças para o
setor automobilístico ao redor do mundo vem do primeiro e que um pedaço
relevante das confecções de grandes cadeias mundiais do último. Não por
coincidência, a Nike solicitou ao governo americano o envio de vacinas para o
Vietnã como forma da produção local retomar mais rápido.
Outro impacto relevante que estamos
vendo a partir da disseminação da Covid-19 vem da China. Com sua política de
tolerância zero com a doença, cada vez que um novo caso é descoberto, temos uma
região fechada, onde, além de fábricas, observamos também portos importantes,
como o de Ningbo-Zhoushan, o terceiro maior em movimentação de contêineres no
mundo, que ficou fechado durante duas semanas em agosto. Dessa forma, mais do
que apenas um problema de falta de matéria-prima devido às paralisações na
produção, temos um verdadeiro pesadelo logístico, com falta de contêineres para
transportar os produtos e filas nos portos para atracar os navios.
As medidas sanitárias de distanciamento
social, para evitar contaminação, agravam ainda mais o problema, uma vez que
tornam os procedimentos de embarque e desembarque mais demorados do que o
normal. Os resultados disso são atrasos nas entregas e encarecimento, não só
das matérias-primas, mas também dos transportes das mercadorias. O frete
marítimo entre os portos chineses e a Califórnia triplicou de preço desde o
início do ano. Ou seja, se quando pensamos em impactos da variante Delta sobre
a economia, pensamos em desaceleração econômica, devemos estender o nosso
horizonte para mais inflação também.
Mantendo o foco nos impactos da Covid-19
na inflação, chegamos ao gás natural. Item especialmente importante para a alta
de preços na Europa, pode se tornar um problema mundial por ser a matéria-prima
básica para a fabricação dos fertilizantes.
As paralisações devido à pandemia, em
conjunto com um aumento da demanda, devido tanto à retomada mais rápida da
economia do que a esperada, quanto às mudanças climáticas, fizeram o preço do
gás natural subir 290% nos últimos seis meses. Pensando na Europa em
particular, o grande aumento da demanda costuma ocorrer no inverno, devido ao
aumento do consumo de calefação. O problema é que, nos últimos anos, o verão
também tem sido inclemente, com as ondas de calor aumentando a utilização do
ar-condicionado. Além disso, temos a transição para a economia verde, o que tem
elevado mais ainda a demanda estrutural por gás natural, à medida que a matriz
energética se afasta das usinas a carvão na produção de energia elétrica e se
aproxima daquelas abastecida por essa commodity.
Pelo lado da oferta, além dos problemas
com a Covid-19, temos uma questão geopolítica relacionada à Rússia. Em meio à
escassez generalizada do produto, os russos iniciaram a manutenção do principal
gasoduto, o Nord Stream 1, que leva o gás dos campos do Mar do Norte para a
Europa, como forma de pressionar os países europeus a certificar o Nord Stream
2, a grande aposta econômica de Vladimir Putin. O fato é que o gás natural vem
sendo o maior fator de pressão sobre a inflação na Zona do Euro. Entretanto,
esse é apenas o impacto direto do aumento do preço desta commodity. Como
supracitado, ela também é matéria-prima básica para a produção de
fertilizantes, que já subiram mais de 100% entre janeiro e agosto de 2021. Os
agricultores ao redor do mundo estão diante do seguinte dilema: usam a
quantidade normal de fertilizantes para manter a produtividade constante, mas
veem o custo de produção subir, ou reduzem a utilização deste insumo e mantém
os gastos contidos, mas ao preço de uma menor produtividade da colheita,
reduzindo, portanto, a oferta do produto. Qualquer que seja a decisão tomada, o
resultado final será mais pressão sobre os preços dos alimentos.
Bem, por aqui não temos mais dúvida da
perenidade da inflação. Obviamente que o IPCA rodando acima de 10% no acumulado
em 12 meses ajuda nessa clarividência. Entretanto, se já reconhecemos o perigo,
ainda não temos certeza de que as armas empregadas até agora serão suficientes
para afastá-lo. Nesse ponto, a Ata da última reunião do COPOM e o Relatório
Trimestral de Inflação (RTI), se não ajudaram a reduzir essa dúvida, pelo menos
indicaram qual a estratégia que o Banco Central do Brasil (BCB) pretende
utilizar para resolver o problema. Se vai conseguir ou não, vamos saber depois.
Há choques de oferta por todos os lados
em várias partes do mundo, o que faz com que a inflação seja um fenômeno
mundial. Os países emergentes, como o Brasil, que têm menos espaço para ficar
em uma discussão filosófica se ela é temporária ou permanente, já estão se
movendo para combatê-la. Mas, mesmo entre os países centrais, parece que a
“ficha começou a cair” e já vemos movimentações importantes para a retirada dos
estímulos monetários dados durante a pandemia. Isso é particularmente verdade
no caso dos EUA, que deverão começar a reduzir as compras de ativos até o final
do ano. A principal consequência dessa movimentação do BC americano já está
sendo vista nos mercados internacionais: o fortalecimento do dólar. Ou seja, um
pedaço da perda de valor da moeda brasileira está ligado menos às nossas
idiossincrasias e mais a um movimento global. Entretanto, quanto menos
estivermos preparados para enfrentar esse vento de proa, maior vai ser a
desvalorização do real, maior o trabalho que o BCB terá para trazer a inflação para
a meta e, consequentemente, pior o crescimento esperado para o Brasil.
Portanto, urge fazer o dever de casa e resolver as pendências fiscais para 2022
o mais rápido possível, sempre lembrando que “bom, bonito e barato” só em
propaganda enganosa.
*Luis Otavio Leal é economista-chefe do
Banco Alfa
Nenhum comentário