Miopia política não pode condenar a Zona Franca de Manaus
**Samuel Hanan
Estamos em 2022, ano eleitoral. E em
todo ano eleitoral, economistas notáveis convocados pelos pré-candidatos à
Presidência da República defendem a necessidade de o Brasil eliminar ou pelo
menos reduzir drasticamente os gastos tributários da União, hoje em torno de R$
300 bilhões/ano. Invariavelmente, esses especialistas apontam para a Zona
Franca de Manaus, citando-a como exemplo de renúncia fiscal despropositada.
Trata-se, entretanto, de uma visão míope, que alicerça um discurso fácil, porém
insustentável.
Ninguém se contrapõe à necessidade de
redução dos gastos tributários da União porque, de fato, é um dispêndio
exagerado, resultante da irresponsabilidade dos governantes e que consome quase
4% do PIB Nacional. Esse diagnóstico é correto. Errado é o remédio proposto,
pelo menos em relação à Zona Franca de Manaus, aliás a única com previsão
constitucional (artigos 40, 92 e 92A do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias - ADCT, de 1988).
É necessário compreender bem o papel da
ZFM antes de condená-la por meio de retóricas eleitoreiras. Criada em 1957 pelo
presidente Juscelino Kubitschek, no arcabouço de seu plano estratégico para
interiorizar o desenvolvimento nacional (Lei nº 3.173) , a ZFM foi depois
alterada pelo Decreto-Lei nº 288/67 de Castelo Branco e definida como “área
livre” de comércio, de importação e exportação e de incentivos fiscais, com o
objetivo de criar no interior da Amazônia um centro industrial e comércio exterior.
Era um passo decisivo de Castelo Branco para, como ele preconizava, “integrar
para não entregar” a Amazônia, alvo de cobiça internacional. A ideia era
viabilizar um polo de produção de bens de alto valor agregado, a fim de
substituir as onerosas importações de bens finais; de rápida implantação e que
não agredisse o meio ambiente e respeitasse a preservação da floresta tropical,
a população ribeirinha, os indígenas, suas terras e suas culturas.
A primeira indústria se instalou no polo
em 1970 e hoje, cinco décadas depois, a Zona Franca de Manaus está consolidada
como grande produtora de eletrodomésticos, microcomputadores, motocicletas,
bicicletas, aparelhos de ar-condicionado, transmissores/receptores, e outros
eletroeletrônicos, gerando emprego e renda fora dos grandes centros. Seu
desenvolvimento deu-se, como previsto, com benefícios tributários, porém hoje a
ZFM responde por apenas de 6% a 8% do total renunciado pelo Governo Federal.
Há, portanto, pelo menos outros 92% a
94% de renúncias fiscais destinadas a outros setores espalhados pelo Brasil, na
sua maioria concentrados nas regiões mais desenvolvidas do País. Essa realidade
é ignorada por aqueles que elegem o polo industrial manauara como o grande
vilão nacional.
A Zona Franca de Manaus não merece essa
pecha nem o nome oficial, que remete à bagunça no linguajar popular. Também não
é um paraíso fiscal, tampouco uma Shangri-lá, devendo ser permanentemente
avaliada e aperfeiçoada na direção de geração de maior valor adicionado local.
Os números da Receita Federal dão a sua
dimensão. O estado do Amazonas abriga 22,54% dos habitantes da Região Norte
(dados de 2020), participa com 22,55% do PIB regional e contribui com
39,25% dos impostos federais arrecadados naquela área. É evidente a desproporcionalidade.
Em 2020, o Brasil somou R$ 298,5 bilhões
de gastos tributários da União. Desse total, apenas R$ 19,5 bilhões referem-se
à renúncia fiscal conferida à Zona Franca de Manaus e áreas de livre comercio
da Região, número ainda menor que 2019 (R$ 28,2 bilhões).
Demonizar a ZFM com base unicamente
nesse benefício é, portanto, argumento que não encontra sustentação. Tal
renúncia, mesmo ínfima numericamente, é essencial para manter o polo, cuja
importância para o País não se discute. A falsa problemática da ZFM esconde o
que verdadeiramente deveria ser questionado: a discricionariedade com que são
destinados os outros 92% a 94% das renúncias fiscais.
A Constituição de 1988 determina
expressamente (artigos 3°, 43, 151 e 165) que tais benefícios devem ser concedidos
com o fim precípuo de diminuir as desigualdades regionais e sociais.
Inquestionável que no caso da Zona Franca esse quesito é respeitado.
Entretanto, a maioria esmagadora dos benefícios fiscais da União foi e continua
sendo concedida a alguns poucos setores da economia mediante a escolha de
governantes, em inegável afronta ao princípio constitucional da impessoalidade,
além de dar margem a pressões e lobbies de determinados nichos econômicos.
Essa prática privilegia alguns setores
sem qualquer garantia de que tal benefício efetivamente contribui para a
redução das desigualdades regionais, tão evidentes neste país.
É preciso enxergar que a ZFM provocou
forte migração da população do interior do Amazonas para a capital, atraindo
cidadãos de todo o estado em busca de emprego e melhores condições de vida. Em
meio século, Manaus cresceu 7,11 vezes, enquanto o interior cresceu apenas 3,06
vezes no mesmo período. A capital se desenvolveu, mas também passou a enfrentar
graves problemas, como a favelização: é a segunda capital brasileira com maior
número de domicílios favelizados (53,4%), atrás somente de Belém (55%).
Por outro lado, o esvaziamento econômico
e demográfico do interior propiciou forte preservação da floresta tropical no
Amazonas, onde a conservação atinge níveis em torno de 86% a 88%. Resultado da
redução da exploração da floresta, cujas chagas atuais são frutos de atividades
predatórias – como a pecuária extensiva, que derruba árvores para aumentar a
área de pastagem – ou ilegais, como o garimpo, contrabando de minérios e metais
e a extração de madeira sem certificação.
A campanha eleitoral e o presidente que
vier a ser eleito necessitam vislumbrar o Amazonas além da Zona Franca de
Manaus, conscientizando-se das enormes oportunidades que se abrem com a
preservação da floresta: a captação e comercialização de créditos de carbono, a
exploração do ecoturismo e a exportação de peixes e frutas tropicais, dentre
outras atividades sustentáveis.
A floresta em pé é um ativo riquíssimo
dos pontos de vista econômico, de credibilidade internacional e climático. Essa
preservação é fundamental para o regime de chuvas nas regiões Centro-Oeste,
Sudeste e Sul, onde se concentra expressiva parcela do agronegócio e do PIB
nacional, não se ignorando também que mais de 65% da matriz energética
brasileira é de origem hídrica.
Se esse olhar atento substituir o
discurso fácil, o Brasil só terá a ganhar.
** Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002)
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