Decisão do STJ pode impactar a saúde de pessoas que dependem de medicações e tratamentos custeados pelos planos de saúde através de ações judiciais
A votação do Supremo Tribunal de Justiça sobre
a cobertura dos planos de saúde, que acontece nesta quarta-feira (23), mobiliza
pacientes e suas famílias que se sentem temerosos com a decisão, e lutam por
direito à saúde
“Apelo, como mãe, para que os ministros
olhem para os nossos filhos como seres humanos que são, que necessitam de
tratamento para que sejam independentes, e não uma briga de dividendos de
empresas milionárias contra famílias que berram por respeito.”
Esse é o apelo da Michelle, mãe de uma
criança autista, ao Superior Tribunal de Justiça. Os ministros do STJ retomam
nesta quarta-feira (23) o julgamento sobre a cobertura dos procedimentos e
tratamentos pelos planos de saúde no Brasil. Se aprovado, na prática,
procedimentos que não estão na lista da ANS (Associação Nacional de Saúde)
podem não ser cobertos pelos planos.
O chamado “rol da ANS”, atualizado a
cada dois anos, define quais procedimentos devem ser cobertos obrigatoriamente
pelas operadoras, o que muitas vezes envolve medicamentos para doenças raras, patologias
graves, paralisia cerebral, tratamentos para autismo, por exemplo.
Para muitas famílias que possuem planos
de saúde, como é o caso do Enzo, de 9 anos, filho da Michelle Carvalho, 39
anos, que conseguiram acesso ao tratamento através de liminar na justiça -
porque receberam a alegação que a terapia não fazia parte do rol de
procedimentos obrigatórios da (ANS), negando assim o custeio da intervenção -
essa decisão afeta diretamente a saúde e a vida dos envolvidos. Michelle
continua:
“Uma interrupção de tratamento, de forma
não planejada, assim como uma mudança de equipe da qual o meu filho não se
identifique afetivamente pode ser muito prejudicial no desenvolvimento dele.
Toda a intervenção é um processo longo, diário, de muito trabalho, mas infelizmente,
ignorada e/ou subestimada pelos planos de saúde, que liberam horas mínimas
terapêuticas e tentam, a todo custo, se esquivar de assumir o que lhes é
responsabilidade. Que as pessoas autistas tenham chance e oportunidades de
acesso a algo tão importante e fundamental para sua vida em sociedade.”
Mãe Michelle e o filho Enzo, de 9 anos
O apelo por acesso e direito à saúde se
une ao da mãe dos gêmeos autistas Nícolas e Vitor, de 14 anos. Fabiana
Rodrigues tem 45 anos, é professora e se sente indignada com a possível
negativa proferida pela turma de ministros:
“Como é possível, em um país como o
nosso, em pleno século XXI, nos depararmos com pessoas que deveriam ser nossos
representantes no cumprimento das leis, e deveriam ser os principais exemplos
no respeito à vida, terem a coragem de se posicionarem contra a vida das
pessoas com deficiência? Contra as pessoas vulneráveis? O desamparo a uma criança com
deficiência não descuida e desampara apenas a criança ou a pessoa com
deficiência, e sim, toda a família.”
Depois de uma longa trajetória, vendo os
filhos sofrerem por não conseguirem se comunicar, passando por muito
sofrimento, em um momento de desespero, Fabiane conheceu a intervenção em
ABA - Applied Beharvior
Analysis - a intervenção comportamental com reconhecimento
científico, para pessoas com autismo, capaz de apoiar as pessoas em seus
desenvolvimentos.
Mãe Fabiana com os filhos gêmeos autistas
“Meus filhos só passaram a ter esse
atendimento pela força da Lei. Eles foram resgatados de uma vida condenada,
através da intervenção em ABA. Imaginar a possibilidade deles perderem um
direito adquirido que lhes trouxe qualidade de vida é imaginar meus filhos
sendo julgados e lançados em um ‘calabouço’”.
Além das mudanças percebidas pelas
famílias dos pacientes, os benefícios alcançados por meio da ABA também são
constatados pela Mestre, Doutoranda e pesquisadora da PUC-SP e Coordenadora de
Pesquisa do IPC - Instituição sem fins lucrativos que promove a pesquisa em ABA,
Renata Michel. Ela diz que, enquanto os tratamentos convencionais ainda não
demonstram quaisquer benefícios, a ABA constata a melhora dos pacientes “que inclui desde o desenvolvimento da
linguagem, habilidades de independência básicas até o ensino de habilidades
acadêmicas e a capacitação dos indivíduos para a inserção no mercado de
trabalho”, comenta.
A Coordenadora de Pesquisa do IPC,
Renata Michel, lamenta:
“Enquanto diversos outros países
estabelecem e chancelam a ABA como ‘padrão ouro’ no tratamento do TEA, a
depender da decisão tomada pelo STJ nesta quarta-feira (23), podemos ter um
retrocesso no entendimento do judiciário. A não presença da ABA no rol da ANS
não significa que tal associação negue a eficácia da ABA, mas tão somente que
ainda não a incluiu em seu rol, possivelmente por razões políticas quaisquer
não pautadas na apreciação da ciência.”
Tratamentos ameaçados pela decisão do
STJ
Nos últimos anos houve uma crescente
demanda de processos ajuizados contra os planos de saúde. Com isso, surgiram
diversas tentativas de impedir a possibilidade de ingresso com essas ações
judiciais. A advogada especialista em Direito da Medicina pela Universidade de
Coimbra e especializada em Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela USP -
Ribeirão Preto, Débora Lubke Carneiro, explica:
“Surgiu um projeto de lei que previa a
não aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de
saúde, o que deixaria os consumidores desamparados nesses casos, autorizava o
reajuste de mensalidade dos idosos, e assim por diante. Entretanto, houve uma
grande comoção popular e grande objeção das instituições que defendem os
consumidores e esse projeto não foi pra frente.”
Em dezembro de 2019 a 4ª Turma do STJ
(Superior Tribunal de Justiça) ao julgar um caso envolvendo o direito de uma
paciente a uma cirurgia que utilizava técnica não alistada no rol da ANS, abriu
a oportunidade para que alguns planos de saúde, entidades de defesa dos
consumidores se habilitassem como Amicus
Curiae (amigo da Corte) e colaborassem com informações sobre o
assunto em debate. Assim como relata Dra. Débora Lubke Carneiro:
“Na época, a 4ª Turma proferiu uma
decisão entendendo que o rol da ANS é taxativo e, portanto, os planos de saúde
não possuem qualquer obrigatoriedade de fornecer procedimentos que ali não
estejam alistados. Vale ressaltar que a decisão não possui caráter vinculativo,
ou seja, ela não se aplica a todos os casos de maneira geral. Apenas representa
o entendimento de uma única Turma do STJ.
A 3ª Turma da mesma Corte não compartilha
do mesmo entendimento e continua proferindo decisões que garantem o direito dos
pacientes, e proíbe essa conduta abusiva por parte dos planos de saúde. Por
ora, isso significa que uma ação judicial que é distribuída na 4ª Turma terá
uma decisão negativa ao paciente, e seu tratamento será imediatamente
interrompido. Por outro lado, um processo distribuído à 3ª Turma tem tido uma
decisão favorável ao paciente e esse permanecerá recebendo o tratamento pelo
plano de saúde. Da decisão de qualquer uma das duas Turmas, cabe o Embargos de
Divergência que é julgado pela 2ª Seção do STJ (que abrange a Terceira e a
Quarta Turma do STJ) com o intuito de uniformizar o entendimento acerca do
assunto.”
O julgamento desse assunto já foi
iniciado com o voto do Relator (Ministro Luis Felipe Salomão da 4ª Turma do
STJ) que entendeu pela taxatividade do Rol da ANS. E caso o rol de
procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) seja considerado
taxativo, o consumidor terá que realizar o pagamento de forma particular ou,
ainda, aguardar a assistência do Sistema Único de Saúde (SUS), o que ensejaria
na sobrecarga no atendimento da rede pública, afetando a vida de milhões de
brasileiros:
“Caso o entendimento da 4ª Turma se
consolide no STJ, consumidores usuários de plano de saúde ficarão à mercê do
rol da ANS e não terão acesso aos tratamentos de saúde de qualidade que possuem
comprovação científica ou que sejam eficazes ao seu problema de saúde. Essa decisão poderá impactar ainda mais
o Sistema Único de Saúde, visto que os pacientes não terão mais direito à
continuidade do seu tratamento de saúde especializado pelos planos de saúde
causando o aumento da judicialização em face dos entes federativos,” finaliza Débora Lubke.
O que diz o Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor (Idec)
Em Nota, o Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor (Idec) acompanha este debate há anos, e sustenta em
memoriais enviados aos ministros do STJ que o Código de Defesa do Consumidor, a
Lei de Planos de Saúde e a lei de criação da ANS são uníssonos e complementares
na classificação do rol como uma referência básica. A Lei de Planos de Saúde
afirma expressamente que todos os tratamentos das doenças incluídas na CID
(Classificação Internacional de Doenças) da OMS (Organização Mundial de Saúde)
são de cobertura obrigatória pelas operadoras.
“O terrorismo econômico é o único
argumento das operadoras para defender a mudança no caráter do rol. A lista da
ANS é interpretada de maneira ampla pela Justiça há mais de vinte anos, e isso
nunca significou uma ameaça real para os lucros das empresas - que, aliás,
seguem crescendo ano a ano”,
explica Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do
Idec.
“Para os consumidores, que são sempre o lado mais vulnerável nessa relação, uma mudança no caráter do rol significaria uma perda imensurável e o risco de não poder acessar um tratamento no momento de maior necessidade. O Idec espera que os ministros levem esse impacto em conta em seus votos”, completa.
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