Securitizadoras ganham um Marco Regulatório para chamar de seu
*Por: Vicente Piccoli M. Braga e Jean de
Almeida Bispo dos Santos
Quem prestou atenção na publicação da
Agenda Regulatória de 2022 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em meados
de dezembro do ano passado, assustou-se com a ausência de menção ao marco
regulatório das Companhias Securitizadoras, que já havia sido objeto da
Consulta Pública em outubro de 2020 e era aguardado eminentemente pelo mercado.
A angústia teve final feliz poucos dias depois, quando foi publicada a
Resolução CVM nº 60, de 23 de dezembro de 2021 (Resolução CVM nº 60/2021),
materializando o esforço de conceder maior objetividade na segmentação de
questões regulatórias específicas às Companhias Securitizadoras.
Para entender o impacto dessas
alterações no mercado brasileiro, contextualizamos aqui as mudanças havidas,
bem como destacamos os principais pontos de atenção.
O papel das Securitizadoras
A securitização é uma das principais
bases do financiamento privado nacional. Grandes empreendimentos dependentes de
um aporte inicial vultoso com expectativas de altos retornos a longo prazo frequentemente
recorrem a essa alternativa, que visa transformar fluxos financeiros ilíquidos
(como recebíveis de cartão de crédito, notas promissórias etc.) em títulos
líquidos, negociados e ofertados no mercado de capitais. Com isso, o risco dos
empreendimentos é distribuído, o custo do capital diminui e os investidores
ganham novas opções de investimento.
A concretização desse tipo de operação
depende de figuras intermediárias legalmente capacitadas, de modo que certas
negociações só podem ser realizadas com instituições específicas.
Entre tais instituições temos as
Companhias Securitizadoras. Regidas juridicamente como sociedades por ações,
elas são responsáveis por adquirir créditos de empreendimentos imobiliários, do
agronegócio ou financeiros e ofertá-los ao público como Certificados de
Recebíveis, tal qual descrito na Lei de nº 9.514, de 20 de novembro de 1997
(Lei 9.514/1997), que, ao tratar especificamente de Companhias Securitizadoras
de créditos imobiliários, constitui também uma regra geral:
“Art. 3º As companhias securitizadoras
de créditos imobiliários, instituições não financeiras constituídas sob a forma
de sociedade por ações, terão por finalidade a aquisição e securitização desses
créditos e a emissão e colocação, no mercado financeiro, de Certificados de
Recebíveis Imobiliários, podendo emitir outros títulos de crédito, realizar
negócios e prestar serviços compatíveis com as suas atividades.”
Dessa forma, as Companhias
Securitizadoras possuem um mecanismo muito específico. Elas não visam adquirir
os créditos para serem remuneradas a médio ou longo prazo sob um spread maior,
como fazem os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs). Seu
objetivo é converter créditos contra os tomadores originais em valores
mobiliários adquiridos por investidores terceiros, possuindo um papel de
intermediação e não de especulação, execução das dívidas ou assunção de riscos
de crédito.
Contextualizada a importância das
Securitizadoras, é necessário analisar quais mudanças normativas foram trazidas
pela nova Resolução e no que isso influenciará a atuação das instituições
elencadas.
Lacunas anteriores
Apesar de serem reguladas de forma lata
pelas Lei de nº 9.514/1997, citada anteriormente, e pela Lei de nº 6.385, de 7
de dezembro de 1976, a normatização específica pela autarquia competente, que
no caso é a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), deixava consideráveis
lacunas.
A Instrução CVM nº 480, de 07 de
dezembro de 2009 (ICVM nº 480/2009), não traz um tratamento específico para a
figura em questão, igualando-a aos demais emissores de valores mobiliários,
além de que outras normas editadas pela Autarquia que tangenciavam tais
instituições apenas diziam respeito ao produto por elas oferecido, como a
Instrução CVM nº 414, de 30 de dezembro de 2004 (centrada nos Certificados de
Recebíveis Imobiliários – CRIs), e a Instrução CVM nº 600, de 1 de agosto de
2018 (centrada nos Certificados de Recebíveis do Agronegócio – CRAs).
Portanto, a Consulta Pública nº 05, de
30 de outubro de 2020, trouxe a discussão da criação de um marco regulatório
para tal entidade, que editasse obrigações específicas à realidade das
Companhias Securitizadoras e finalizasse a necessidade de responder pelos
mesmos encargos de emissores de valores mobiliários que possuam natureza totalmente
distinta, como os emissores de ações (ICVM nº 480/2009, artigo 2º, §2º, inciso
I).
Das discussões havidas por conta da
referida Consulta Pública, a CVM publicou a Resolução CVM nº 60/2021, cujos
principais destaques comentamos a seguir.
Principais mudanças trazidas
A vigência da Resolução CVM nº 60/2021
se inicia em 2 de maio de 2022, sendo as Companhias Securitizadoras obrigadas a
adotarem todas as novas mudanças em até 180 dias após essa data, ou seja, em 29
de outubro deste ano. As questões reguladas de maior impacto na operação das
Companhias Securitizadoras podem ser divididas em cinco, quais sejam: (i)
categorias de registro; (ii) requisitos para órgãos estatutários; (iii)
procedimentos de obtenção, suspensão e cancelamento de registro perante a CVM;
(iv) prestação de serviços; e (v) obrigações gerais – incluindo determinações
sobre a retenção de saldos das operações.
Categorias de registro
Quanto às novas categorias de registro,
há uma semelhança com as que ainda se aplicam às Companhias Securitizadoras.
Como citado anteriormente, a ICVM nº 480/2009 segmenta todos os emissores de
valores mobiliários em duas possíveis categorias, divididas entre A e B. A
primeira é mais abrangente, permitindo a negociação de quaisquer tipos de
valores mobiliários, enquanto a segunda possibilita apenas uma atuação mais
restrita, limitando a negociação aos mercados regulamentados, com algumas
exceções. A nova Resolução segue a mesma lógica, dividindo as Companhias em S1
e S2.
Assim, a diferença fica na
especificidade. Com enfoque na atuação efetiva das Companhias, a Resolução CVM
nº 60/2021 enquadra na categoria S1 apenas as Companhias que operem títulos de
securitização em regime fiduciário, ou seja, constituindo um patrimônio
separado que não é afetado por qualquer questão da Companhia, como uma possível
falência. Já a S2 se configura de forma mais ampla, abarcando também as
Companhias Securitizadoras que emitam títulos em seu próprio patrimônio,
assemelhando-se à Categoria A da ICVM nº 480/2009.
Ainda nesse tópico, o primeiro parágrafo
do artigo 3º da nova regra traz uma facilidade adicional, dispensando a
necessidade de registro para Sociedades de Propósito Específico subsidiárias
integrais de Companhias Securitizadoras já enquadradas na S2, desde que a
atuação seja restrita a segmentos que não possuam necessidade legal de regime
fiduciário, tenham somente uma emissão em circulação e compartilhem dos mesmos
diretores da Companhia.
Requisitos para órgãos
estatutários
Não havia, anteriormente, qualquer
regulação específica sobre o formato estatutário das Companhias
Securitizadoras. Assim, com vistas a evitar conflitos de interesse, o artigo 5º
da Resolução CVM nº 60/2021 possui a previsão de que é necessário designar um
diretor específico para atividades de securitização (que pode também acumular
as responsabilidades de distribuição de títulos fora do regime fiduciário, caso
a Companhia esteja na categoria S2) e outro para o cumprimento de regras,
políticas e controles internos relativos à própria Resolução, sendo que tais
funções não podem ser acumuladas na mesma pessoa.
O artigo 5º também traz limitação
expressa a que o diretor designado ao cumprimento de regras, políticas e
controles internos seja imbuído de outras funções que limitem sua
independência. Dessa forma, busca-se enquadrar o corpo estatutário em limites
bem definidos para evitar qualquer desvio de finalidade da operação
final.
Procedimentos de obtenção, suspensão e
cancelamento de registro perante a CVM
A norma pontua que os procedimentos para
a obtenção do registro devem ser feitos perante a Superintendência de
Supervisão de Securitização (SSE). Os documentos necessários e prazos para o
devido registro estão listados nos dois primeiros artigos do suplemento B da
Resolução CVM nº 60/2021, sendo necessário ter a constituição societária,
estatutária e regimental bem definidas, dado que os procedimentos de criação de
estatuto social, eleição de diretores e cumprimento de questões regimentais
legais são basilares e geralmente mais demorados.
Os procedimentos para a suspensão e
cancelamento, seja de ofício, seja voluntário, também constam na norma. Os que
são feitos de forma voluntária possuem algumas exigências prévias, como a
inexistência de títulos de securitização circulando ou a anuência de todos os
titulares dos títulos de securitização sobre o cancelamento do registro, dentre
outras questões que garantam a inexistência de qualquer pendência da companhia
para com os titulares dos valores mobiliários.
Já a suspensão de ofício depende da má
conduta reiterada pela própria Companhia Securitizadora. O descumprimento
contínuo por 12 meses de obrigações periódicas ante a CVM sujeita à suspensão
do registro, a qual implica na vedação de emitir novos títulos. Cabe salientar
que essa decisão pode ser contestada por um pedido de reversão apresentado à
SSE com a devida instrução.
Por conseguinte, o cancelamento do
registro exige outros fatores. Só é cancelado o registro da Companhia
Securitizadora em ocasiões extremas, como a extinção da sociedade e a
prolongação da suspensão por 12 meses consecutivos. Essa decisão de
cancelamento também comporta recurso.
Prestação de serviços
A seção I do capítulo VII da nova regra
dispõe sobre a contratação de Prestadores de Serviço. O artigo 33 contém a
exigência de que, no mínimo, devem ser contratados custodiante, escriturador,
auditor independente e agente fiduciário, sendo os três primeiros
obrigatoriamente registrados na CVM. Também é necessária a contratação de uma
agência classificadora de risco, caso os títulos de securitização sejam
ofertados publicamente a investidores não qualificados. A norma deixa a cargo
da Companhia Securitizadora a decisão de contratar ou não um agente de
cobrança, desde que previsto no respectivo instrumento de emissão.
Já a relação de serviços prestados pela
própria Securitizadora comporta o monitoramento, controle, processamento e
liquidação dos ativos e garantias, os quais podem ser desempenhados por outros
prestadores, sem, contudo, que a responsabilidade da Companhia seja
eximida.
Obrigações gerais
Descritas extensivamente no Capítulo V,
as principais obrigações gerais das Companhias Securitizadoras são as normas de
conduta, relacionando questões sobre a proteção do crédito e da remuneração do
investidor, boa-fé, transparência, entre outras descritas nos incisos do artigo
17.
Também são dispostas vedações e
limitações à atuação das Companhias Securitizadoras, sendo as principais
relacionadas com: (i) o impedimento de adquirir direitos creditórios ou
subscrever títulos de dívida originados ou emitidos, direta ou indiretamente,
por partes relacionadas, com o objetivo de lastrear as emissões, salvo nos
casos elencados nas alíneas do inciso I do artigo 18; (ii) a vedação em prestar
garantias visando o benefício próprio ou de outro patrimônio separado por meio
de bens em regime fiduciário; (iii) a vedação em negligenciar a defesa dos
direitos e interesses dos proprietários finais dos títulos emitidos; e (iv) a
rígida limitação em possibilidades de substituição de direitos creditórios que
constituem patrimônios separados.
Um outro aspecto que merece destaque é o
artigo 22 da nova regra, que possibilita os rendimentos financeiros
remanescentes das operações serem detidos pelas Companhias, desde que expressos
em seu instrumento de emissão. Essa inovação implica que a devida remuneração
das Companhias deve vir acompanhada de uma correta comunicação com o detentor
dos títulos, criando mais segurança jurídica para o setor.
Por fim, é importante ressaltar que a
norma também traz uma seção destinada a quais regras, procedimentos e controles
internos devem ser adotados pelas Companhias Securitizadoras, sob o comando de
um diretor específico (sobre o diretor, vide seção Requisitos para órgãos
estatutários).
*Vicente Piccoli M. Braga e Jean de Almeida Bispo dos Santos são sócios da área Bancário, Meios de Pagamento e Fintechs do FAS Advogados
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