Will Smith, a bofetada e a jovem psiquiatra
Marco Antonio Spinelli*
A festa do
Oscar de 2022 será relembrada como aquela em que um ator candidato à maior
categoria da premiação, o Oscar de Melhor Ator, subiu ao palco para esbofetear
o apresentador na frente de milhões de pessoas.
Tomei
conhecimento do fato na manhã seguinte do prêmio, e cliquei no discurso desse
ator, Will Smith, ao receber a sua estatueta. Confesso que esse discurso me
causou muito mais desconforto do que a bofetada. Fui trabalhar com essa
sensação de estranheza, mas não iria falar nada sobre o assunto se não fosse
uma postagem de uma jovem colega psiquiatra no Instagram. A moça comentava que,
apesar da cena da bofetada ter sido o destaque, as pessoas precisavam atentar
ao seu discurso, que, segundo ela, tinha sido “lindo”. Aí eu realmente fiquei
preocupado, e minha veia antiga de formador de jovens psiquiatras começou a
pulsar sem parar aqui dentro. Se a moça achou o discurso lindo, não entende de
discursos ou precisa de uma orientação mais acurada sobre sintomas que
saltariam aos olhos de qualquer profissional medianamente formado. Vou explicar
então, para ela e para quem me honra lendo esse texto, porque o discurso é mais
preocupante que a bofetada. Friso, antes de mais nada, que não há nenhuma
pretensão em diagnosticar ou desrespeitar o ator que bateu ou o comediante que
apanhou. Muito menos ser indelicado com os bons sentimentos da jovem colega.
Para quem
não sabe a origem da treta, Chris Rock, apresentador da festa do Oscar
conhecido pelo humor ágil e às vezes mais ácido do que devia, fez uma piada
sobre a esposa de Will Smith, Jada Pickett Smith, que raspou os cabelos após
uma longa batalha contra uma doença, Alopécia. Essa é uma doença
particularmente cruel com mulheres, que provoca constante perda de grande
quantidade de cabelos. Chris comentou que ela seria escalada para a continuação
de um filme, “GI Jane”, em alusão ao fato que a atriz principal desse filme
antigo, Demi Moore, fazia o papel de uma jovem que raspava o cabelo para ser a
única mulher a ingressar na tropa de elite da Marinha Americana. A comparação
foi sobre a careca, o que deixou Jada desconfortável. Will subiu ao palco
enfurecido e deu a famosa bofetada, que virou o meme mais reproduzido no mundo
nos dias que se seguiram. Chris Rock, para quem não sabe, é autor do
sitcom “Todo Mundo Odeia o Cris”, sobre as desventuras de sua juventude. Pelo
visto, o título tem razão. Will também gritou: “Deixe o nome da minha esposa
fora da p...da sua boca”.
Por
estranho que pareça, a organização deixou Will Smith participar e continuar no
teatro depois do ocorrido. Se Chris Rock tinha outra piada sobre a família
Smith, guardou para si. O Oscar de Melhor Ator foi dado a Will, como era
esperado. O discurso banhado em lágrimas, não foi lindo, foi bizarro. Nele,
Will Smith falou que estava no limite pela missão que Deus tinha dado a ele, de
defender a sua família nesse mundo extremamente cruel do Show Business. Ele
precisava proteger a atriz que fez a sua esposa e as meninas que interpretaram
as irmãs Williams no filme que lhe deu o Oscar, King Richard. Ele também teria
a missão de ser “Um Rio para seu povo” e, como a vida imita a arte, ele tinha agido
como um “Pai Louco”, como Richard Williams era conhecido como um pai maluco e
superprotetor de suas filhas, Vênus e Serena Williams. Ele, como Richard, faz
coisas loucas porque “o amor nos faz fazer coisas loucas”. Agradeceu à sua
família no filme, agradeceu à Serena e Vênus Williams, que aplaudiram com uma
expressão assustada e constrangida toda aquela verborreia confusa, desconexa, e
banhada em lágrimas, não pela vitória, mas por se tornar “uma luz para o
mundo”. Will Smith agradeceu e se elegeu no protetor de sua família no cinema,
mas esqueceu de citar a sua família na vida real. Não mencionou nenhuma vez
seus filhos, que estavam sendo focalizados pelas câmeras durante seu discurso.
Querida e
jovem colega, Will Smith está sobrecarregado. Por Deus, por sua missão, por sua
Missão de Protetor da Família e deu Povo (aliás, quem faz parte de seu Povo? Os
Americanos? Os Afro-Americanos? As atrizes do filme? As vítimas de piadas de
péssimo gosto?). A sobrecarga e o estresse de Will Smith provocaram um colapso
em sua capacidade de regular suas emoções, seu discurso messiânico e seu
comportamento, agredindo um colega de profissão diante de centenas de colegas e
milhões de expectadores. O seu discurso não foi lindo, mas um agregado de
sintomas que podem ter várias causas de base. No mínimo, são evidências claras
que o ator premiado com o maior prêmio na sua categoria está precisando de
cuidados e de ajuda. Tomara que consiga admitir a necessidade de procurar essa
ajuda, o que estatisticamente é mais difícil para homens e para celebridades.
O que
aconteceu na festa do Oscar chama a atenção para um mundo em que as pessoas
estão se forçando até os mais desumanos limites, virando memes e viralizando o
próprio desespero.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta junguiano e autor do livro “Stress o Coelho de Alice Tem Sempre Muita Pressa”
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