Marina de la Riva lança o álbum "Raices Compartidas"
As imagens, embora uma terrível e outra maravilhosa, da Gatesca Pantomima e da Damisela Libertad – a primeira referindo-se ao famoso quadro de Goya sobre os horrores da guerra e a outra quase o seu oposto, a “Senhorita Liberdade” – aparecem juntas nos muitos questionamentos da lindíssima canção “Y que sabes tu?”, a única nova e autoral de “Raices Compartidas”, o quinto álbum da cantora e compositora cubano-brasileira Marina de la Riva.
Entre os extremos da guerra e ânsia por
liberdade, a canção questiona:
"Que sabes tu de mis dolores
Que sabes tu de mi soledad
De los dias que me quedo
Mirando hacia el mar”
E os questionamentos da canção não são
nada arrogantes, e sim sinceros. “Y
que sabes tu?”, que pode realmente saber o ouvinte brasileiro da
realidade artística e existencial de uma cantora brasileira que tem raízes
tanto aqui como em Cuba – de onde veio seu pai e toda a sua linhagem paterna,
sua língua tão materna quanto o português, sua sensibilidade musical igualmente
bilíngue – que mira e vive sobre o mar Atlântico que separa seus dois países.
“Raices Compartidas”, que lança “Y que sabes tu?”, parece generosamente
querer nos ajudar a saber da música, cultura, da intensa História e da vida
real que há - mais do que entre Brasil e Cuba – entre as canções escritas no
Brasil em português e as em castelhano compostas em Cuba e todos os países
hispânicos. Em quase todas as nove faixas do álbum essa relação aflora de forma
explícita e emocionante.
O clássico moderno “Cachito”, escrito pela
compositora mexicana Consuelo Velásquez e popularizado no mundo por Nat King
Cole e no Brasil por Emilinha Borba no final dos anos 1950, ressurge
suingadíssima e sensual num dueto de Marina de la Riva com Ney Matogrosso –
talvez o cantor brasileiro contemporâneo que mais naturalmente incorpore
influências latinas na sua música.
Da mesma autora, o bolero clássico “Besame Mucho” traz essa
mesma relação de forma mais sutil. Acompanhada do violão do argentino (que já
morou no Brasil) Torcuato Mariano e de orquestra de cordas, Marina faz o bolero
como se fosse uma bossa nova, bem diferente, mas referindo-se à célebre
gravação de João Gilberto que transformou para sempre o clássico bolero também
numa clássica bossa nova. Há, portanto, duas formas igualmente clássicas de se
fazer “Besame Mucho”,
como bolero e da forma “brasileira”. Para acentuar suas ‘raices compartidas’,
Marina de la Riva escolhe a segunda, canta em espanhol, na forma brasileira.
E para mostrar que isso não é nada
óbvio, Marina faz um “Influência
do Jazz”, tema igualmente clássico da Bossa Nova escrito por Carlos
Lyra, de forma latina, ou “afro cubana”, como diz a letra da canção brasileira.
Quando a música foi lançada, em 1963, Tom Jobim dizia que se tratava de “uma
canção subliminar”, ou seja, que apesar de criticar a influência do jazz
afro-cubano no samba – com, por exemplo, a acentuação rítmica no chamado “tempo
forte” do compasso, e não no “tempo fraco”, a tal síncope do samba – de certa
forma a incorporava. Misturando – até mais que compartindo – suas raízes,
Marina incorpora essa sutil e irônica observação de Jobim à canção de Carlos
Lyra. E faz um “Influência do
Jazz” de fato com influência do jazz afro-cubano.
Já uma ‘salsa brasileira, meio Rio, meio
Havana’ como “Ai, ai, ai, ai,
ai”, de Ivan Lins e Vitor Martins parece ser tanto uma síntese de
“Raices compartidas” que mereceu no álbum duas versões, a original em português,
e uma em castelhano vertido pela própria Marina de la Riva – é bom lembrar que
volta e meia, ela faz versões de canções brasileiras para a sua outra língua,
sendo a mais conhecida a que escreveu para “Adivinha
o quê”, que gravou com o autor Lulu Santos. E na forma que Marina e
seus músicos escolheram para fazer, “Ai,
ai, ai, ai, ai” saiu mais lenta e suingada, mais pesada e muito
mais cubana que a versão original consagrada pelo autor Ivan Lins. Como fez um
“Besame mucho”
brasileiro, “Ai, ai, ai, ai,
ai’ saiu cubano, raices compartidas, raízes compartilhadas,
realmente.
Marina levou tão a sério esse
“compartir” as duas culturas que resolveu fazê-lo em campo neutro. Nem no Rio,
nem em Havana, “Raices Compartidas” foi gravado em Los Angeles, cidade em que
tanto artistas e músicos cubanos e hispânicos em geral – não fosse aquilo um
histórico território mexicano – e brasileiros fizeram História. No estúdio em
que ela gravou, o East West Studios, por exemplo Tom Jobim gravou seu célebre
disco com Frank Sinatra, em 1967.
Sob a produção do brasileiro radicado em
Los Angeles, Moogie Canasio, que já ganhou o Grammy principal com artistas como
Sérgio Mendes e João Gilberto, Marina conseguiu arregimentar músicos de ponta
do mercado latino e norte-americano. Além de Torcuato Mariano em arranjos e
violão de “Besame Mucho”,
contou com o também argentino Cheche Alara, no piano e arranjos, o peruano
Ramon Stagnaro (que infelizmente faleceu por Covid um pouco depois), nos
violões e guitarra, o cubano Carlito del Puerto, no baixo, o americano Vinnie
Colaiuta, na bateria, os brasileiros Jessé Sadoc, no trompete e Rafael Rocha,
no trombone, e as percussões divididas pelos cubanos Luis Conte e Rafael
Padilla – que tocam como só cubanos conseguem tocar, um sotaque de percussão
inimitável - além de orquestra de cordas.
Tal exuberância musical mostra-se
fluente tanto em antigas canções cubanas como “La gloria eres tu” que, embora recentemente
tenha voltado à fama na voz de Luis Miguel, é uma canção dos anos 40 de José
Antonio Méndez, como da contemporânea e pop “Humo
de Tabaco”, do cubano radicado no Canadá Alex Cuba. Ou ainda em um
bolero cubano clássico “Como
Fue”, de Ernesto Duarte Brito, recriado por Marina “comme il faut”,
cubaníssima. Tão cubana, que o bongô utilizado por Rafael Padilla na nova
gravação foi o mesmíssimo instrumento usado no registro clássico da orquestra
de Benny Moré, nos anos 40, presente do tio que tocou naquela ocasião.
Há, basicamente, duas formas de lidar
com essa intensa relação da música cubana com a brasileira: pelo viés quase
folclórico das rumbas, boleros e salsas dançantes, ou pelo viés da canção
moderna e política da Nova Trova, de autores como Silvio Rodriguez e Pablo
Milanés. Marina de la Riva, cubana e brasileira que é, vai por um caminho mais
sutil, o do gosto latino contemporâneo, mais ligado aos ouvidos de hoje, seja
em Los Angeles, Havana ou Rio. Sem deixar de ser político nem dançante, como
comprovam os versos generosos de “Y
que sabes tu?”
“Que sabes tu de mis anhelos,
De la Gatesca Pantomima
De la Damisela Libertad
Que no me saca a bailar”.
Entender os anseios, os medos, mas
sempre tirar o par para dançar é o que une as linguagens musicais que Marina de
la Riva aqui junta e traduz como uma nativa dos dois mundos.
Por
Hugo Sukman
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