Últimas

Novas regras de preço de transferência brasileiras - Convergência para o Modelo OCDE

*Por Juliana Porchat e Eric Nagamine 

No dia 12 de abril de 2022, a Receita Federal do Brasil (RFB), em conjunto com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apresentou os principais pontos da proposta para alteração das regras de preços de transferência brasileiras, com o intuito de alinhar o sistema brasileiro de preço de transferência com as diretrizes da OCDE. 

O novo sistema será o resultado de anos de estudos e discussões entre as autoridades fiscais brasileiras e a comunidade internacional, representada pela OCDE. Mais especificamente, em 2018, a OCDE e o Brasil lançaram um projeto em conjunto para examinar as semelhanças e divergências entre as regras brasileiras e a estrutura de preços de transferência da OCDE.

Os estudos conjuntos identificaram diversas divergências, mas as principais questões resultantes da aplicação das regras de preço de transferência brasileiras são a potencial erosão da base tributável, a transferência de lucros entre países e a dupla tributação. Por outro lado, o estudo reconhece como ponto forte da norma brasileira a facilidade de aplicação das regras para os contribuintes, considerando a adoção de safe harbors e margens fixas.

De acordo com a RFB, o novo sistema deve atingir os seguintes objetivos principais: apurar de forma exata a base tributária no Brasil, eliminar a dupla tributação e preservar a simplicidade e segurança tributária para os grupos multinacionais e para a administração tributária. 

Diante do cenário acima, seguem abaixo os principais pontos do novo sistema proposto pela RFB. É importante mencionar que esses são apenas destaques do novo sistema, que ainda será desenvolvido e discutido com as diversas partes afetadas por essa mudança tão relevante. 

  1. Princípio arm’s length, Transações Controladas, Partes Relacionadas e Comparabilidade
  • Adoção do princípio arm's length conforme o Artigo 9º da Convenção Modelo da OCDE e as diretrizes da OCDE. De acordo com esse princípio, o valor das transações praticadas entre partes relacionadas deve ser equivalente ao que seria praticado em transações com partes independentes.
  • Abrangência maior das operações sujeitas às regras de preço de transferência, incluindo transações que envolvam a transferência de intangíveis, operações financeiras, acordos de compartilhamento de custos (cost sharing), serviços intragrupo e reorganizações societárias. Tais operações não são suficientemente reguladas pelas regras de preço de transferência atuais para garantir o cumprimento do princípio arm’s length
  • Nova definição de partes relacionadas e inclusão na norma de lista das operações controladas a fim de assegurar maior segurança jurídica. 
  • Análise de comparabilidade como pilar do novo sistema de preços de transferência, realizada a partir das principais características das transações. Primordialmente, o valor alocado deve ser determinado considerando-se os diversos elementos jurídicos e econômicos aplicáveis ao caso, como as condições contratuais, funções e riscos atribuídos às partes, características específicas do bem ou do serviço, circunstâncias econômicas específicas das entidades envolvidas e do mercado com todo, bem como a estratégia de negócios. 
  1. Métodos de Preço de Transferência
  • Implementação dos métodos de preço de transferência reconhecidos pela OCDE, incluindo os métodos de lucro transacional – Transactional Net Margin Method (TNMM) e Profit Split Method (PSM). 
  • O TNMM compara a margem de lucro líquido de um contribuinte decorrente de uma transação em condições não consideradas arm’s length com as margens de lucro líquido percebidas por partes independentes em transações similares. Por outro lado, o PSM é normalmente aplicado a investimentos conjuntos entre empresas que pertencem ao mesmo grupo econômico. Nestes casos, os lucros e prejuízos podem variar significativamente, pois não são transações regulares de mercado. Teoricamente, o referido método permite uma alocação mais precisa dos lucros e prejuízos entre empresas do mesmo grupo econômico. 
  • Previsão de outros métodos também para casos específicos, como, por exemplo, o método de valoração no caso de intangíveis únicos e de alto valor. 
  • Possibilidade de escolha da parte testada doméstica ou estrangeira quando relevante para a aplicação do método específico. 
  • De acordo com o novo sistema, o contribuinte deve obrigatoriamente adotar o método de preço de transferência que seja definido como apropriado de acordo com a natureza da transação (“regra do melhor método”). É importante notar que, com algumas exceções, de acordo com as regras atuais de preço de transferência, o contribuinte é livre para escolher o método mais vantajoso para fins de cálculo do preço de transferência. 
  1. Ajustes de Preço de Transferência
  • A proposta prevê ajustes primários aplicados sobre a base de cálculo no caso de descumprimento do princípio arm's length, bem como a possibilidade de ajustes secundários com o intuito de evitar efeitos indiretos que resultem na transferência de lucros entre as partes.  Ajustes secundários se aplicam, por exemplo, em caso de necessidade de financiamento intragrupo para compensar as perdas artificiais registradas no País em razão de transações não arm’s length (ex.: foi citada a possibilidade de caracterização de empréstimos). 
  • A nova legislação regulamentará também os ajustes de conformidade com o mutual agreement procedures (MAP) a fim de eliminar a dupla tributação. 
  1. Commodities
  • Definição de commodities baseada nas abordagens de precificação adotadas por partes não vinculadas de forma a capturar o valor de mercado da commodity.
  • A nova regra deverá permitir os ajustes de comparabilidade, desde que haja comprovação documental e ajustes suportados pelas práticas de mercado. 
  • Um ponto importante será definir a data-base da precificação a ser adotada pelos contribuintes. 
  1. Intangíveis
  • As regras brasileiras de preço de transferência não preveem métodos adequados para aplicação em operações com intangíveis. Assim, as novas regras definirão intangíveis para fins de preço de transferência, adotando um conceito mais amplo do que o atualmente adotado para fins fiscais e contábeis. 
  • Análise das chamadas características ou funções DEMPE no contexto de avaliação de intangíveis (Development, Enhancement, Maintenance, Protection and Exploitation).
  • O novo sistema deverá alterar as regras atuais de dedutibilidade de royalties a fim de garantir seu uso efetivo como medida anti-abuso, interagindo com o princípio arm's length. A medida é crucial para determinados contribuintes que podem estar sujeitos a dupla tributação em razão de restrições à dedutibilidade de royalties no Brasil vis-à-vis as exigências de preço de transferência aplicadas em países que seguem as regras da OCDE. 
  1. Serviços Intragrupo
  • O novo sistema pretende definir os serviços intragrupo sujeitos à aplicação das regras de preço de transferência, uma vez que os métodos atuais não são adequados para determinar corretamente o valor arm’s length para essas transações. 
  • As autoridades fiscais mencionaram a possibilidade de utilização dos métodos direto e indireto (de acordo com requisitos apropriados).
  • Serviço de baixo valor agregado (low-value adding services) podem estar sujeitos a safe harbours.
  1. Contratos de Compartilhamento de Custos
  • Definição de contrato de compartilhamento de custos (Cost Contribution Arrangements – “CCAs”) para fins de aplicação das regras de preço de transferência, abrangendo dois tipos de CCAs:  desenvolvimento e serviços.
  • As novas regras introduzirão diretrizes para determinar quando os contribuintes são considerados participantes de CCAs, bem como a compensação adequada, incluindo as situações de entrada ou saída de participantes. 
  1. Reestruturação de negócios
  • Os estudos conjuntos da OCDE concluíram que a falta de uma análise de comparabilidade, incluindo análises funcionais e de risco, bem como a ausência de orientação sobre os aspectos de preço de transferência das reestruturações de negócios cria preocupações significativas para fins do BEPS. 
  • Além disso, as operações de reestruturação de negócios podem resultar em perda de lucros para o Brasil, uma vez que a transferência de intangíveis valiosos podem ter um relevante potencial de lucro e não é capturada pelas regras atuais. 
  • As novas regras introduzirão diretrizes para determinação da compensação apropriada caso as reestruturações de negócios provoquem a transferência de atividades, funções, riscos ou lucros para a outra parte, especialmente no caso de transferência de valor para outra jurisdição.
  1. Transações Financeiras
  • A proposta abrange os mais variados tipos de transações financeiras, incluindo operações de dívida, cash-pooling, garantias, seguros, entre outras. 
  • As regras de preço de transferência não impedirão a aplicação das regras de limitação de dedutibilidade de juros.
  1. Segurança Jurídica em Matéria Tributária
  • Para prevenir disputas e aumentar a segurança jurídica, a proposta prevê uma estrutura legal para desenhar – quando possível – safe harbors de acordo com a realidade econômica do mercado. 
  • A proposta também autoriza a RFB a celebrar Advance Pricing Agreements (APAs) a fim de regular casos específicos. 
  1. Documentação
  • Adoção da abordagem de três níveis para documentação suporte relativa ao cumprimento das normas de preço de transferência: Declaração país a país (Country by Country report – CbC), master file e local file

Vale ressaltar que a aproximação das regras de preço de transferência brasileiras com as diretrizes da OCDE sobre o tema é um importante passo para a aprovação do Brasil como membro da OCDE. 

Como próximos passos, a RFB pretende discutir as potenciais alterações com o mercado, o que inclui os maiores contribuintes, a fim de coletar eventuais contribuições ao novo sistema de preços de transferência. Após efetuado o processamento das contribuições, o Governo elaborará um pacote legislativo final, que deverá ser aprovado pelas duas casas legislativas. 

De acordo com o cronograma apresentado pela RFB, a previsão é que até 2023 as atividades relacionadas à adoção e operacionalização do novo sistema sejam implementadas. 

Autores:

Juliana Porchat é sócia do FAS Advogados na área de Planejamento Tributário, Transacional e Operações Internacionais

Eric Nagamine é sócio do FAS Advogados na área Tributária

Juliana Porchat

Eric Nagamine

Nenhum comentário