O Brasil precisa mudar para não perpetuar a impunidade
Samuel Hanan*
Muito recentemente, o
governador de um estado brasileiro filiou-se a um grande partido com a
finalidade de se candidatar à reeleição. Esse ato, legítimo no regime
democrático, esconde algumas das maiores mazelas brasileiras: a corrupção no
meio político e a sensação de impunidade que permeia toda a sociedade.
O ato de filiação desse
governador, anunciado com pompa e circunstância, é verdadeiro escárnio à moral
e à ética que deveriam ser os pilares da atividade política e da administração
pública como, aliás, preceitua a nossa Constituição Federal.
Isso porque o político
em questão acaba se tornar réu em ação penal. Envolvido em um escândalo de
superfaturamento na compra de equipamentos para o combate à Covid-19, com a
utilização de recursos públicos, foi denunciado pela Procuradoria da República
e, por decisão unânime, uma das turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
recebeu a denúncia, dando início a um processo criminal contra o governador. A
ele são imputados crimes como fraude em licitação, peculato, dispensa irregular
de licitação e embaraço à investigação. Não é pouca coisa, como também não foi
pequeno o valor dispendido na contratação investigada.
O Estado Democrático de
Direito garante a qualquer cidadão acusado o direito à ampla defesa. E isso,
evidentemente, vale também nesse caso, como não poderia deixar de ser. Tanto
que seus advogados já atuaram na tentativa de arquivar a investigação, sem
sucesso, e continuarão em sua defesa nos tribunais superiores.
A questão é que nossa
legislação ainda permite situações contraditórias. Esse caso citado é uma
delas. O governador tornou-se réu, porém não foi afastado do cargo e poderá ser
candidato à reeleição. Mantido no maior cargo executivo de seu estado, está
autorizado a continuar ordenando despesas, assinando contratos e definindo onde
gastar o dinheiro público. Mais que isso: terá acesso à parte da verba dos
bilionários Fundo Eleitoral e Fundo Partidário para o financiamento de sua campanha
à reeleição, o que em tese lhe garante certa vantagem no pleito, não apenas
porque seu partido – por critério de tamanho da bancada no Congresso Nacional –
terá a disposição uma das maiores fatias desses fundos, mas notadamente porque
também não precisa se afastar do cargo para concorrer a um novo mandato.
Há ainda outra questão.
Se vencer a eleição e vier a ser condenado e afastado do cargo – o que é
difícil em razão do grande número de recursos previstos na legislação
processual e diante da proibição da prisão mesmo após condenação em segunda
instância, já definida pelo STF -, assumirá o vice-governador. E é sabida a
pouca importância que o eleitor brasileiro dispensa à figura do vice na hora do
voto, sequer se lembrando do seu nome passados poucos meses da eleição. Cultura
que, em nome da boa democracia, precisa ser mudada em um país no qual três
vices assumiram em definitivo a Presidência da República após a
redemocratização: José Sarney, com a morte de Tancredo Neves, e Itamar Franco e
Michel Temer, com os impedimentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff,
respectivamente.
Se o sistema judiciário
dispõe de legítimos mecanismos de garantia do contraditório e da ampla defesa,
a fim de se evitar a condenação injusta de inocentes, por outro lado é preciso
que o Brasil crie instrumentos legais para a proteção da população e do erário
contra gestores públicos envolvidos com atos de imoralidade administrativa, sem
que isso represente qualquer ameaça à presunção da inocência.
Sem isso, continuaremos
assistindo a casos como o de outro governador, condenado em 2019 a mais de 6
anos de prisão em regime aberto por causa de um escândalo envolvendo o desvio
de valores de empréstimos consignados de servidores públicos. Apesar da
gravidade do caso, o governador foi mantido no cargo porque o crime aconteceu
em mandato anterior. Lamentavelmente, não é um episódio isolado e a história
está cheia de exemplos.
Essa leniência com que
o Brasil trata os atos de corrupção, ainda que tenha havido alguns avanços nos
últimos anos, corrói a democracia, desacredita as instituições, alimenta a
sensação de impunidade e drena os cofres públicos.
O Brasil, num grande
pacto envolvendo Executivo, Legislativo, Judiciário e a sociedade civil,
precisa, urgentemente, trabalhar por reformas que moralizem a administração
pública e deem uma resposta firme e efetiva para quem pensa que pode
administrar uma cidade, um estado ou o país como um balcão de negócios. Em uma
nação de tamanhas carências, não há mais espaço para a imoralidade. O eleitor
mais incauto pode se deixar enganar, iludido por falsas promessas e campanhas
milionárias, mas o voto não legitima a improbidade.
** Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor do livro “Brasil: um país à deriva”.
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