Proteção desprotege
Marco Antonio Spinelli*
O jovem neurologista
Sigmund Freud ficava intrigado com os quadros que hoje chamamos de Conversivos:
paralisias, estupores, cegueiras e vários quadros neurológicos que não tinham
amparo em lesão orgânica, ou seja, não havia uma doença física diagnosticada ou
diagnosticável nelas. Seriam de origem psicológica, ou resultante de um
conflito não resolvido. Freud foi para Paris estudar em Salpetriére, com
Charcot, uma celebridade neurológica da época, que tinha resultados
espetaculares em alguns casos com o uso da Hipnose. No final do século XIX,
esses estudos tiveram um gigantesco impacto na Neurociência que engatinhava,
pois pela primeira vez a Ciência Moderna vinculava nossas emoções e afetos como
geradoras de sintomas e doenças.
Quando Freud voltou
para Viena, começou a aplicar a Hipnose em suas pacientes, em sua maioria do
sexo feminino, que apresentavam aquelas paralisias e sintomas neurológicos
vários sem causa orgânica. Os quadros eram chamados de Histeria, pela ideia dos
gregos que os sintomas eram causados por movimentos do Útero causando sintomas
nervosos (Hystera= Útero). O termo Histeria foi banido da Psiquiatria pela
característica preconceituosa contra mulheres, vistas como frágeis
emocionalmente naquela época. Mas isso é outra história. O fato é que o jovem
Sigmund começou a descobrir em suas sessões de Hipnose que experiências traumáticas
estavam diretamente relacionadas aos sintomas nervosos que os pacientes
apresentavam. Alguns anos depois ele abandonou a Teoria do Trauma e a Hipnose,
para descrever a origem sexual dos sintomas histéricos. Mas ficou gravado em
nossa Cultura que o trauma precoce e repetido pode ter efeito gerador de
sintomas e doenças. Atualmente temos evidências muito claras que os traumas na
Infância geram alterações em nossa expressão de genes e predispõe a muitas
doenças, como Depressão e Dependência Química, por exemplo. Muito pais ficam
extremamente preocupados em causar algum tipo de trauma nos filhos. A Infância
então passa a ser vista como um Paraíso de brincadeiras e felicidade contínuas,
para evitar os traumas.
Quando meus filhos
estavam no Ensino Fundamental, uma das mães manifestava nas reuniões de Pais
que seu filho não conseguia, por conta de um quadro ansioso, fazer e entregar
as tarefas da Escola. Ela propôs que as lições de casa fossem abolidas, para
não afetar a autoestima das crianças, e olha que contou com algumas adeptas,
até que outras mães chamaram a moça à razão. Hoje em dia eu acho que ela teria
sucesso em seu pleito. Vivemos nesse Universo enlouquecido de mães amedrontadas
e pais cansados que estão prontas a avançar na jugular da Escola se os filhos
não tiverem um bom desempenho. A culpa é de quem? A culpa é de Sigmund. Ele que
falou da importância dos traumas para geração de Neuroses. As crianças não
podem passar por nenhum dissabor, senão vão virar adolescentes deprimidos e
drogados no futuro. Os grupos de WhatsApp de Mães deveriam ter supervisão
psiquiátrica. A velha Histeria agora dá lugar a medos e reatividade a qualquer
coisa que pode ser “traumática” para nossos príncipes e princesas.
Esse Outono\Inverno tem
sido enlouquecedor para os Pediatras. Dois anos de Pandemia criaram um buraco
na Imunidade das crianças, sabe por que? A falta de interação diminuiu muito a
trocas de vírus entre elas. Essa troca está sendo intensificada agora, com um
download constante de cepas virais. Covid é fichinha. Uma amiga Pediatra me
contou que uma criança de três anos tinha três vírus diferentes no seu Perfil.
Simultaneamente. A mãe se descabelou toda com o resultado, a criança evolui
bem, felizmente. Por que saímos de Freud e fomos para o consultório de Pediatria?
Porque a fantasia do medo de traumas cria fragilidades como os dois anos de
quarentena: não se expor a dificuldades, fracassos, viroses e outros
estressores deixam crianças e pais fragilizados no enfrentamento da vida. A
ideia de evitar o Trauma é um trauma em si, gerando uma cultura de medo e
fragilização.
A Biologia tem um nome
para a importância dos estressores: Hormese.
Hormese é a exposição
às dificuldades que permitem que as pessoas e os organismos cresçam e se tornem
fortes diante das dificuldades. Isso significa que precisamos das adversiddaes
e dos erros para nosso desenvolvimento. Tentar evitar os erros é como a mãe
ensandecida que queria abolir a lição de casa de todos para não prejudicar a
autoestima de seu filhinho: isso faria a mágica de fragilizar o seu filho e
toda a sua classe.
Uma música antiga de
Erasmo Carlos dizia que proteção desprotege. Hoje ele seria atacado por alguma
associação de mães ou de protetores de alguma coisa. Eu diria que o poeta
queria dizer que a Superproteção desprotege. E muito. É duro ver uma criança
falhar, fracassar ou se amedrontar. Mas devemos abraçar o medo e continuar
errando, pois é isso que gera aprendizado e crescimento.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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