A correlação da indústria do entretenimento e o desperdício de alimentos
Por David Hertz e Adriana Leal, Gastromotiva
David Hertz, fundador da Gastromotiva
Misael Gonçalo
Viver extremos parece ser uma
característica do Brasil. Em um momento em que o país recebe eventos de grande
porte como o Rock in Rio,
Lollapalooza e Villa Mix, estamos imersos
na pior crise de fome dos
últimos 30 anos. Hoje, o número total de pessoas sem alimentos ultrapassa os 33
milhões; a insegurança alimentar brasileira superou a média global, afetando
sobretudo mulheres, famílias pobres e pessoas com idade entre 30 e 49 anos –
que compõem um grupo etário com mais filhos. O que isso tem a ver com os
eventos promovidos pela indústria nacional do entretenimento? A intersecção se
dá no desperdício de alimentos e na reflexão sobre como o combate a essa
distorção social pode endereçar soluções pragmáticas para mitigar essa crise e
alimentar os brasileiros famintos.
O Brasil desperdiça 27 milhões de
toneladas de alimentos por ano, de acordo com dados da Organização Mundial das
Nações Unidas, sendo que 80% desse desperdício ocorre no manuseio, transporte e
nas centrais de abastecimento. Traçando um paralelo com a indústria de grandes
eventos, esse desperdício acontece, em larga escala, no descarte incorreto de
alimentos produzidos pelas lanchonetes e restaurantes criados para alimentar o
público e os trabalhadores no antes, durante e pós (processo de desmonte)
festivais, shows e
eventos esportivos. As empresas fornecedoras de alimentação estão pouco ou nada
familiarizadas com as alternativas legais de direcionamento do excedente de
produção, nem tampouco com o potencial de impacto positivo – e aqui podemos
considerar tanto pela perspectiva social como de meio-ambiente (o “E” e o “S”
da sigla ESG) – ao evitar que toneladas de alimentos próprios para o consumo
tenham por destino o lixo.
Os temas fome, desperdício e doação de
alimentos têm, por isso e pelo contexto de país que nos encontramos, de estar
na ordem do dia dessa indústria do entretenimento e dos profissionais que nela
atuam. Sabemos que os padrões das legislações brasileiras que regem o tema são
extremamente rígidos, mas temos que entender que é necessário mergulhar no
fazer solidário para concretizar a doação desse alimento, que sobrou e que é
seguro, fazendo com que ele chegue à população vulnerável, sendo que muitas
dessas pessoas em situação de insegurança alimentar vivem no entorno pobre
desses eventos com investimentos milionários.
E por que o tema da doação de alimentos
pela indústria do entretenimento não conquistou a dignidade que deveria à luz
da escalada da fome e do impacto do desperdício de alimentos no meio ambiente?
Há algumas hipóteses que passam pela falta de conhecimento das legislações que
regem a doação segura; pelo medo do nutricionista de perder seu registro profissional
– já que a responsabilidade técnica e jurídica pela doação correta recai sob os
ombros dele –; ou pela falta de olhar o desperdício da porta para fora, ou
seja, a ausência da visão do potencial que esse alimento próprio para o consumo
e seguro tem de combater a fome de quem reside em locais muito próximos a esses
eventos.
É aqui que entra a Lei 14.016, que trata
da doação de alimentos no Brasil. Aprovada em 2020, a legislação legitima ações
de combate ao desperdício de alimentos ao regulamentar a doação de excedentes
de alimentos para o consumo humano. A questão a ser levantada é a ampla
disseminação dessa lei entre os profissionais que atuam nessa indústria do
entretenimento, inclusive os nutricionistas. Para além da responsabilidade
técnica desses profissionais, há a responsabilidade social implícita das
empresas organizadoras, sobretudo, porque a fome destrói a dignidade humana.
Adriana Leal, nutricionista da Gastromotiva Misael Gonçalo |
De concreto temos toneladas de resíduos
que estão indo para o lixo, mas esses “resíduos” são comidas adequadas. Na
Gastromotiva tivemos um exemplo recente de doação de 600 sanduíches que
sobraram de um campeonato de game;
na ocasião, lidamos com um impasse para que a doação fosse efetivada por conta
do desconhecimento da lei. Sabemos, no nosso fazer cotidiano, que a
desinformação sobre a aplicação da lei tem prejudicado muito o processo de
acelerar a doação. Esse é um fenômeno relativamente normal no Brasil: a cada
nova lei aprovada passamos por um tempo que compreende a disseminação e o
entendimento dessa legislação, antes do uso propriamente dito a partir da
apropriação dela. Entretanto, no caso da doação de alimentos, enquanto esse
tempo corre vagaroso, muitas pessoas passam fome! É preciso acelerar esse
processo de aplicação da lei em prol do combate ao desperdício.
A Lei 14.016, e sua respectiva
atualização, é um supergol do ponto de vista dos receptores da doação, mas, por
outro lado, temos uma indústria que precisa se apoderar e fazer uso dela como
instrumento, inclusive de responsabilidade social e ambiental. Precisamos ter
mais doadores protagonistas do uso dessa lei.
Em um momento em que a agenda de grandes
eventos começa a ser retomada no Brasil – e que é inegável o poder que têm de
sensibilizar um número enorme de pessoas –, é necessário usar esse potencial
para falar sobre responsabilidade socioambiental ativa e forte da indústria de
entretenimento. Temos que mover esse ponteiro do combate à fome e ao
desperdício de alimentos. Mais de 33 milhões de pessoas esperam isso de nós!
DAVID HERTZ é chef,
cofundador da Gastromotiva, do Refettorio Gastromotiva e do Movimento de
Gastronomia Social. Empreendedor social Ashoka, TED Senior Fellow, Young Global
Leader pelo Fórum Econômico Mundial e UN Food Systems Champion pela ONU.
Pioneiro em usar o poder da comida para transformar a vida de pessoas que vivem
em comunidades vulneráveis através da articulação com setor público, empresas e
organizações sem fins lucrativos, para tornar os sistemas alimentares mais
equitativos.
ADRIANA LEAL é nutricionista da Gastromotiva responsável pelo acompanhamento de projetos e desenvolvimento de pesquisas que combatem o desperdício de alimentos e insegurança alimentar. Fundadora da Curadoria de Projetos em Nutrição, negócio de impacto social que objetiva o desenvolvimento humano através de soluções para a redução do desperdício de alimentos, desenvolvimento de produtos com aproveitamento integral dos alimentos e Educação Nutricional que envolva cultura e saúde do indivíduo.
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