Perdidos no espaço
Marco Antonio Spinelli*
Numa aula do diretor do
NIH, agência ou Ministério da Saúde dos Estados Unidos, o seu presidente falou
do sucesso nas últimas décadas na redução da mortalidade por Doenças
Cardiovasculares, AVCs e mesmo a diminuição da mortalidade e da expectativa de
vida de diversos tipos de Câncer. A Psiquiatria também avançou muito nessas
mesmas décadas, mas os índices de doenças como a Depressão e o Suicídio
continuam aumentando ano após ano.
Um estudo do Ministério
da Saúde, agora do Brasil, mostra um aumento progressivo, como no resto do
mundo, dos casos de morte violenta e suicídio, com uma parcela alarmante desse
percentual se deslocando para a Pré Adolescência, a Adolescência e os adultos
jovens, como já abordei em outros artigos. Mas não fica só aí. Hoje, no mundo,
tem havido um aumento dos números em pessoas no meio de sua vida, entre 45 e 65
anos, e também um aumento de suicídio em idosos. Não dá para colocar a culpa só
nas redes sociais, mas também assisti uma aula que mostrava o aumento das
internações por automutilação e cortes na pele de crianças entre 10 e 14 anos
desde 2009 até os nossos dias. E o que aconteceu na vida dessas crianças de
diferente nessa época? Com o advento e a popularização dos smartphones, o
acesso de pessoas de todas as idades às redes sociais e Youtube se tornou muito
maior, com o surgimento de influencers, haters, fake news e tantas expressões
em Inglês que já fazem parte do nosso cotidiano. Tudo ficou à distância de um
clique. O progresso das redes também possibilitou o acesso quase irrestrito a
jogos online, com disrupção do sono já difícil dos adolescentes. Tudo isso teve
um efeito tóxico em crianças mais vulneráveis.
Para quem acha que eu
sou um Dom Quixote enfrentando os monstros da vida virtual, estão muito
enganados. Hoje, quando estou em um Congresso Online e a aula exposta é muito
chata, procuro outra aula com o mesmo tema na Internet e aprendo muito mais.
Vejo os gols da rodada (exceto quando o São Paulo perde) no Youtube e encontro
um filme que eu vi nos anos 80 na plataforma de streaming. Acho tudo isso uma
delícia, mas acho que deveríamos confiscar celulares nas horas de refeição e
desligar o wi fi depois da meia noite. No Pós Pandemia, as crianças tem
apresentado muita dificuldade com a cognição social e capacidade de tarefas em
grupos, depois de dois anos de isolamento. O contato social mediado por telas
também piora a capacidade de interação ao vivo.
As redes sociais
também permitiram a polarização de opiniões e a propagação de uma cultura de
injúrias, ataques furiosos e canalização da ira e frustração que já teve e terá
cada vez mais consequências trágicas, como um cara entrar numa festa e matar o
aniversariante porque tinha a imagem de Lula no seu bolo.
Estamos na infância do
mundo global e conectado, e vamos precisar comer muito arroz com feijão para
aprender a lidar com os desafios provenientes dessa época. A Psiquiatria está
sofrendo com isso. Temos que olhar os números e colocar a cabeça para entender
o que está acontecendo. Os números das autoagressões são uma pista. Vivemos
numa espécie de Patologia de Transição, sem uma sociedade que proteja as pessoas
no meio dessa transição. Temos uma transição entre os 9 e 13 anos, outra entre
14 e 18 anos, entre 18 e 25 anos e, um grupo que pouca gente presta atenção,
mas que eu chamo de Nova Adolescência, que é a dura transição da vida madura,
com mudanças hormonais, profissionais e sociais de Menopausa, Andropausa e
perda de vigor físico e intelectual dessa fase. Tem havido um aumento de
eventos e sofrimento nesse período, suicídios inclusos. Os idosos também
engrossam a lista. Como diria um cowboy encima de seu cavalo: que diabos está
acontecendo?
Vou ter que recorrer ao
Renato Russo de novo, desculpem. No “Há Tempos” ele escreve (e canta): “Muitos
temores nascem do cansaço/ E da solidão”. Bingo. Vivemos na Sociedade do
Cansaço. E da Solidão. Os temores que nascem de ambos é um temor muito
importante para nossa espécie: perder contato com o grupo. Ou com a vida.
Perder a sensação de pertencimento está ficando muito, muito perigoso. Tomar um
pé da namorada, perder o emprego, sofrer bullying na escola, ou seja, situações
em que a pessoa sente a perda da conexão com a vida, com o grupo, ou de estar
sem saída, sem futuro, situações de perda e mudança: é melhor cuidar bem dessas
pessoas. Cuidar dos temores do Cansaço e da Solidão.
Precisamos
desacelerar. Precisamos muito aprender e ensinar as pessoas próximas e queridas
a sair dessa sensação de urgência e loucura. Temos que preservar as coisas que
descansam nosso cansaço, como fazer detox de telas, de preservar descansos e da
nossa capacidade de, conscientemente, desacelerar. Do jeito que cada um
conseguir.
Nossa sociedade perdeu
a força protetora dos ritos de passagem para proteger as transições das
diversas estações e ciclos de uma vida. Os números mostram que deveremos ter
muito cuidado com as pessoas que atravessam essas zonas de transição. Navegar é
preciso. Viver também é preciso.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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