Tripulação, preparar para o pouso
Fernanda Zacharewicz[1]
Gosto muito
de viajar. Sou do tipo que topa qualquer itinerário. Cada oportunidade é chance
de encontrar o inesperado, o novo, o descobrir. É deparar-se com
situações nas quais nos perguntamos: o que me aguarda ou, no caso de
quem, como eu, vai sem roteiro determinado, a indagação que constantemente
surge é “como vou sair dessa?”. Encontrar os caminhos, achar a resposta,
esforçar-se por entender a língua estrangeira sempre trouxeram histórias das
quais pude rir por anos. Foram inúmeros os trens perdidos, noites passadas em
estações, barracas encharcadas, tensão perdida em trilhas com crianças
pequenas. O humor e a paciência que aprendi a ter comigo mesma nessas ocasiões
foram responsáveis pela minha segurança e por eu poder escrever essas linhas
hoje.
No início dessas férias, eu viajei. Essa
viagem foi diferente de todas as outras. Embora tenha desfrutado da convivência
dos amigos que não via desde 2018, conhecido novas pessoas, me surpreendido com
lugares, com encontros pra lá de frutíferos; algo em mim, desde a partida,
queria voltar para casa.
Como todas as outras, essa viagem também
acabou e percebi-me sentada no avião, com destino à essa cidade gigantesca, que
se abre em possibilidades que irrompem agressivamente o pavimento. Irrompem em
todas as direções, acima sem limites e abaixo com seus subsolos habitados, suas
garagens, seus trilhos e esgotos.
Estar no avião é estar em um tempo e
espaço suspensos. Na ida, a viagem se iniciou, mas ainda não. Na volta, a
viagem acabou, mas ainda não. Não se está em casa, mas também não se chegou a
lugar algum. O voo não se encaixa no contexto da viagem e nem da vida diária.
Está fora, existe e não existe. O pensamento perfeito para fazer bobagem.
Depois de haver repetido infinitamente a
playlist baixada para esse momento, cansada demais para trabalhar ou ler (muitas
vezes as duas ações são sinônimas) e tendo a opção de usar o wifi da aeronave
para enviar e receber mensagens gratuitamente, “esqueci” que cada escolha tem
um preço. Como resultado óbvio da neurose, digitei as fatídicas linhas. Aqui,
nem cabe suspense: é claro que enviei!
Do outro lado, a leitura e o silêncio
como resposta. Eram os minutos finais do voo. A previsão do tempo no destino
combinava com os tons de cinza que coloriam meu humor. Aí o anúncio:
“Tripulação, preparar para o pouso.” Como assim? Precisava, pelo menos, de mais
umas 15 horas de voo para me preparar para o pouso. Eu estava ansiosa por
voltar para casa, não era? O que eu tinha que fazer mesmo ao descer do avião?
Eu não sabia o que encontraria nesse lugar tão íntimo.
Há mais de uma década trabalho em casa
e, ao contrário do que se pode pensar, minha vida diária sempre me surpreende.
A surpresa, o fora do planejado, é parte da rotina. Desde pequenos compromissos
que alteram o planejado até a ameaça do vírus mortal – sob a qual todos nós
estivemos – faz necessário o saber se virar com o que aparece no momento.
Foi aí que percebi, que era exatamente
assim. As respostas não chegam, não há um outro que as envie. Eu pousava
na minha rotina como ela sempre havia sido, sem roteiro. Perdia-me e com os
passos traçando caminhos novos, achava-me para em seguida perder-me,
deslumbrando-me com novas paisagens, novos amigos, novos jeitos de viver com
minhas principais perguntas que se endereçam a mim mesma.
Ao contrário de outros voos, dessa vez
com o trem de pouso tocando o chão, pousamos leve, a aeronave e eu. É isso, no
final são as viagens que faço que me ensinam a viver o dia a dia, com a leveza
dessas aventuras. A suspensão do tempo, a suspensão de resposta me fizeram
aterrissar leve. A resposta não virá, pois não se trata de recebê-la. Trata-se
de criá-la a cada vez, uma e outra vez. Pousei leve, continuando a viagem de
escolher como existir.
[1] Psicanalista, editora da Aller, membra da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, doutora em psicologia pela PUC/SP.
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