Perfil
Por Bert Jr.*
“O teu sorriso é imemorial como as
Pirâmides
E puro como a flor que abriu na manhã de
hoje.”
Sempre admirei o poema de Mario Quintana
dedicado à musa do cinema, Greta Garbo. Dois versos que transmitem ao mundo o
que aquela figura inalcançável era capaz de inspirar. A portentosa beleza do
que parece eterno, junto à fragilidade do efêmero. Imponência e delicadeza em
máximo grau. Fusão de opostos, que aturde e transporta, como toda boa poesia,
para a dimensão do insólito, onde se flutua, ou se é achatado, numa atmosfera
de gravidade nunca coincidente com a que nos é costumeira.
Embora longe de ser um Quintana,
acalento certas veleidades poéticas. Volta e meia, me chega inspiração para
compor uns versos, anotados no que houver à mão: um guardanapo de papel, um
extrato bancário, ou mesmo o bloco de notas do celular. Nunca, porém, tivera o
ímpeto de dedicar a alguém um poema feito Dois
versos para Greta Garbo.
A maioria de meus contatos se dá em
ambiente virtual, por meio das redes sociais. E estas não possuem o
encantamento mágico do cinema – fábrica de grandes ídolos e mitos. Por isso,
surpreendeu-me descobrir, por acaso, um perfil no Instagram que me colocou de
joelhos. “Curiosava” os likes na postagem de uma “amiga” virtual, quando
deparei com o insólito. A propósito de uma foto em que minha “amiga” aparecia
de biquíni, na praia, li a frase: “Tua beleza amplifica a do dia”. Não era,
convenhamos, um comentário comum. Sua linguagem pulsava numa veia poética.
Imediatamente, passei a investigar o perfil desconhecido, que se chamava
@grata_noultimo. A “bio” era desprovida de informações pessoais, possuindo uma
única linha de 85 apresentação: “Devora-me ou decifro-te!”. Pior que uma
marretada, pois se tratava de uma citação de ninguém menos que Mario Quintana,
retirada do breve poema A esfinge.
Estava feita a conexão.
O seu feed
continha frases de forte originalidade, intercaladas com imagens de cenários
naturais, em que a dona do perfil era retratada à distância, feito espécime de
uma fauna exótica, capturado graças a um feliz movimento de câmera. Apenas se
percebia o cabelo longo, as linhas gerais do corpo, sem se chegar a discernir o
desenho dos olhos e da boca. Passei imediatamente a segui-la no Instagram. Fiz
mais. Mandei-lhe uma mensagem, como nos tempos do Quintana se enviavam cartas,
ou bilhetes. Elogiei seu perfil no Insta, pedindo que visitasse o meu. Dois
dias depois, verifiquei que curtira alguns de meus poemas. Porém, não me seguiu
de volta.
Aquilo me feriu. Coincidíamos na
admiração a um grande poeta nacional. Por que evitava seguir-me? Sentia-se
superior por possuir o quíntuplo de seguidores? Resolvi contornar a questão,
perguntando o que achara dos meus poemas. A resposta chegou por meio de uma
postagem: “Ouço, em ti, o que desconheço de mim. No que não dizes, me
adivinho”. Sem pensar duas vezes, perguntei se era comprometida. A resposta
veio cifrada em seu próximo post: “Liberdade é o dom de não se prender. É
conviver com o sonho em nossas escolhas”. Animado, propus uma conferência por
vídeo. No dia seguinte, chegou uma nova postagem sua no feed: “Eu abro as minhas
portas. As janelas, serás tu que abrirás”. Perguntei se morava na mesma cidade
que eu, se poderia encontrá-la pessoalmente, se aceitaria tomar um café comigo,
ou sair para jantar. No final do mesmo dia, havia uma nova frase em seu perfil:
“Sou ativamente lânguida. Não espero, apenas me faço pronta”.
A essa altura, comecei a estranhar essa
forma enigmática de relacionamento. Uma parte de mim passou a duvidar de que as
postagens representassem, de fato, respostas às minhas perguntas. Por outro
lado, se eram reações às minhas mensagens, pareciam seguir uma tática de evasivas,
permitindo à misteriosa dona do perfil inspirar-se e divertir-se,
simultaneamente. Depois de muito me torturar com tais dúvidas, decidi sondar a
nossa “amiga” comum, com quem troquei áudios sobre o assunto. Descobri que a
dona do perfil e minha “amiga” virtual se conheciam há tempos. Minha obsessão
se chamava Rafaela, era casada e tinha dois filhos. Perguntei desde quando
escrevia. A “amiga”: “Rafaela, escritora? Hahaha! Você sabe o que é ghost-writer?”
Doeu. Doeu muito. Mas, pela primeira
vez, me senti quase um Mario Quintana, quando, no meio da madrugada, acordei
sobressaltado, com os seguintes versos a transbordar do peito:
Duas linhas para @grata_noultimo
Teu perfil é confiável como as fake news
E sedutor como as juras eternas sob o
luar.
Pedro Moita |
*Bert Jr. é autor do livro “Do Incisivo ao Canino”, diplomata e embaixador do Brasil na república de Cabo Verde, na África
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