Privilégios moldam 'capitanias hereditárias' modernas no Brasil
Samuel Hanan*
Os livros de história
registram que o Brasil teve as chamadas capitanias hereditárias, primeira
divisão administrativa e territorial implantada pela Coroa de Portugal durante
a colonização da América portuguesa.
Foram criadas 34 anos
depois que os portugueses chegaram ao Brasil, por ato e ordem do rei Dom João
III. Por esse sistema, o território recém-descoberto foi dividido em 15 grandes
faixas de terra que tiveram a sua administração entregue aos escolhidos e
eleitos pela Coroa portuguesa. E como o nome já diz, podiam ser transmitidas de
pai para filho.
A experiência,
entretanto, durou somente até 1548. Sucumbiu em razão da incompetência
gerencial e administrativa dos privilegiados capitães donatários. Contribuíram
decisivamente para o fracasso do modelo a falta de conhecimento e de
comunicação, arrogância e os maus-tratos impostos aos índios, os habitantes
naturais da nova terra. As experiências negativas foram se acumulando até
inviabilizarem por completo sua continuidade.
Nesse curto período de
vigência, o sistema deu aos capitães donatários todos os poderes e direitos e
uma única obrigação: pagar o dízimo à Coroa. Aos vassalos não foi reservado
direito algum; somente trabalho e obrigações.
Passados quase cinco
séculos, o Brasil há muito deixou de ser uma colônia para se transformar em uma
República. É possível afirmar, entretanto, que o país ainda conserva
semelhanças daquela época? Pode parecer devaneio, mas a resposta é sim!
O Brasil de 2023 possui
27 unidades federativas que poderiam ser chamadas de novas capitanias, algumas
mais duradouras que as do Império. Temos em 15 estados donatários modernos,
quatro ou cinco pessoas, familiares ou amigos muito próximos, que vestindo as
mesmas cores partidárias governam por muito tempo, alternando-se no poder. Em
São Paulo, uma mesma sigla governou por 28 anos com apenas cinco nomes (outros
três estiveram no poder por apenas oito meses, em razão da incompatibilidade
dos titulares) e há casos em outros estados em que autênticas dinastias
governaram por 32 e até 36 anos.
Ainda que amparados
pelo voto popular, esses governos tiveram parentes ou amigos ungidos para tal
se alternando na principal cadeira do estado, de forma que famílias se mantiveram
ou se mantêm no comando por muito mais tempo que as capitanias hereditárias,
que duraram apenas 14 anos.
Tal como nos anos 1500,
os donatários do século XXI também gozam de privilégios, agora em versão
ampliada. Dentre eles pode-se citar o foro privilegiado que lhes garante, além
da perspectiva de prescrição de eventuais crimes praticados no exercício do
poder, o direito de serem julgados não por magistrados concursados, mas por
ministros das cortes superiores que – embora possuam relevante histórico
profissional, reconhecida competência técnica e elevado conhecimento - muitas
vezes foram escolhidos e nomeados por esses próprios políticos.
É preciso lembrar que o
modelo adotado no Brasil garante a esses magistrados escolhidos a manutenção
dos mesmos direitos assegurados aos concursados, como vitaliciedade, e em caso
de improbidade administrativa, aposentadoria compulsória com remuneração
proporcional ao tempo de serviço, porém sempre muito acima da média nacional. A
eles também é garantida remuneração superior à média do 1% da população mais
rica do país, em absurdo contraste com a realidade da imensa maioria da
população nacional.
Além disso, esses
donatários modernos têm acesso a recursos públicos bilionários - por meio dos
fundos partidário e eleitoral distribuídos discricionariamente dentro das
siglas controladas por eles próprios –, o que lhes assegura enorme vantagem nos
pleitos, possibilitando sua reeleição com facilidade e sem a necessidade de
despender recursos financeiros próprios. Pior, além de utilizarem mal esses
gigantescos recursos, ainda descumpriram as leis que disciplinam seu uso e
reservam parte dos recursos para utilização em campanhas de candidatos de
minorias, como de mulheres e negros, e agora buscam legislar a autoconcessão de
anistia pela má utilização dos recursos. Pagamos, todos nós, com recursos
públicos para permitir que alguns poucos nos representem e sejam alçados a
patamar superior ao 1% mais rico da população, com salários superiores ao
quinhão mais privilegiado da nação. Nenhuma profissão tem essa benesse:
médicos, professores e policiais, por exemplo, têm de custear com recursos
próprios seus estudos e taxas de inscrição em concursos. Por que políticos não
têm de fazer nenhum sacrifício?
Como se fosse pouco,
esses privilegiados ainda são beneficiados com tributação diferenciada que não
atinge 100% dos seus recebimentos, mas
apenas pequena parte,
sendo que parcela significativa é composta de penduricalhos adicionados aos
vencimentos sob rubricas que não sofrem incidência de tributos.
O contraste é evidente
quando se analisa o tratamento dado aos vassalos do século XXI que compõem a
imensa maioria da população brasileira. Para esses, são reservados direitos
diminutos, vez ou outra ameaçados de serem retirados ou reduzidos por simples
atos monocráticos ou portarias e decretos. Exemplos maiores são a não correção
anual da tabela do Imposto de Renda e das aposentadorias e pensões. Tudo em um
país em que tributos são sempre corrigidos pela inflação, e, às vezes, pela
inflação acrescida de juros.
A esses cidadãos comuns
sobram deveres, como o de pagar tributos sem nenhuma correlação com a devolução
de serviços públicos oferecidos pelo Estado. Hoje, o brasileiro já tem de
trabalhar mais de 150 dias por ano somente para o pagamento de tributos. E
apesar dessa enorme carga tributária – que encarece os produtos de primeira
necessidade -, os salários dos servidores públicos de atividades essenciais -
professores, profissionais de saúde e de segurança pública - são aviltantes.
Não existem normas e leis obrigando a correção dos vencimentos dessas
categorias, nem o cumprimento dos planos de carreira, quando eles existem.
O resultado é que o
país tem uma educação de má qualidade, com índices sofríveis nos indicadores
internacionais; saúde caótica e segurança pública ineficaz, com o incontrolável
aumento dos números de violência urbana.
As capitanias
hereditárias acabaram em 14 anos. Os donatários modernos resistem há décadas,
com as benesses e interesses pessoais desafiando o espírito republicano, em
vergonhoso deboche com a maioria absoluta dos brasileiros. Até quando?
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
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