A IA está se tornando o principal vetor de transformação cultural das organizações
*Por Victor Gonçalves
Quando falamos em inteligência artificial, é comum imaginar um salto tecnológico. Mas o que está acontecendo é mais sutil, e, talvez, mais radical. A IA está revelando o quanto as empresas ainda pensam de maneira mecânica.
Nas últimas décadas, criamos organizações capazes de medir tudo, mas de compreender muito pouco. Chamamos de “dados” aquilo que é apenas vestígio do passado, e de “análise” aquilo que confirma nossas crenças. E agora, diante de uma tecnologia que aprende, as empresas estão descobrindo o quanto desaprenderam.
O discurso da IA nas corporações é quase sempre técnico: automação, copilotos, produtividade exponencial. Mas há um ponto de inflexão: a IA está se tornando o principal vetor de transformação cultural das organizações. Não por substituir pessoas, mas por obrigá-las a repensar o que significa ser inteligente em um ambiente coletivo.
Pense nisso: toda organização é, em essência, um sistema cognitivo. Ela coleta informações (dados), interpreta (processos), toma decisões (liderança) e aprende (cultura). A IA, ao se integrar a esse fluxo, altera o equilíbrio entre esses elementos. De repente, aquilo que antes dependia de intuição passa a depender de evidência. E o que chamávamos de “gestão” ( a arte de decidir com base em experiência) se transforma em algo novo: a arte de decidir com base em aprendizado.
Mas nem toda empresa está preparada para aprender. A maioria foi desenhada para repetir. A IA, nesse contexto, age como um espelho lógico: ela devolve, com precisão matemática, o modo como a organização pensa. Se a cultura é fragmentada, o modelo será inconsistente. Se o ambiente não tolera erro, o algoritmo nunca melhora. Ou seja: a IA é tão inteligente quanto a cultura que a abriga.
Talvez este seja o ponto mais negligenciado da transformação atual. De nada adianta treinar modelos se a empresa continua incapaz de questionar suas próprias premissas. E aqui entra um paradoxo fascinante: quanto mais sofisticada a tecnologia, mais dependemos de atributos humanos: empatia, discernimento, ética, propósito.
A IA é excelente em reconhecer padrões, mas incapaz de atribuir sentido. Ela pode prever comportamentos, mas não compreender intenções. E o papel da liderança, nesse novo contexto, é justamente preencher essa lacuna: traduzir informação em significado.
Há algo quase filosófico nisso. Durante décadas, as empresas se esforçaram para se comportar como máquinas: previsíveis, controladas, eficientes. Agora, criamos máquinas que aprendem, e estamos descobrindo que o verdadeiro diferencial talvez seja voltar a ser mais humano.
Mas para isso é preciso algo que as empresas raramente cultivam: paciência. Modelos de IA aprendem por iteração. E iteração é, essencialmente, o direito de tentar várias vezes até acertar. Uma organização que não permite isso jamais será uma organização inteligente. E é por isso que a adoção da IA não é um projeto de tecnologia, mas de governança mental.
A transição que vivemos é comparável à passagem da astronomia geocêntrica para a heliocêntrica. Por séculos, acreditamos que as empresas eram o centro do sistema e que tudo girava em torno da eficiência.
A IA desloca esse eixo: ela coloca o aprendizado no centro. E, com isso, força líderes e times a aceitarem uma ideia desconfortável: a de que o conhecimento, por mais avançado, sempre será incompleto.
A IA aprende com dados passados. Nós, com as perguntas que fazemos sobre o futuro. E é nesse diálogo entre o previsível e o possível que nasce a inteligência organizacional de verdade.
*Victor Gonçalves é Chief Digital Officer na Verity.
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