Gatos: Pets ou Pragas?
Utilizando classificação equivocada, empresa brasileira que detém a concessão dos serviços públicos de saneamento básico no Estado de São Paulo assina contrato com exterminadora de pragas, podendo incorrer em crime de maus tratos
Segundo dados do setor Pet, o Brasil detém a segunda maior população de cães e gatos do mundo - com mais de 54 milhões de cães e quase 24 milhões de gatos. Um fato curioso é que, a cada 100 lares brasileiros, 44 têm pets - contra apenas 36 com crianças até 12 anos.
Para a grande maioria da população, é inegável: os pets são como membros da família e parte integrante da rotina doméstica. Para algumas empresas, entretanto, gatos são parte da "fauna sinantrópica nociva" - ou seja, pragas. E seguindo essa lógica, devem ser dispostos como tal.
Segundo a Profa. Dra. Vânia Plaza Nunes, diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, presidente da Comissão de Médicos Veterinários de ONGs do CRMV-SP e idealizadora da Comissão de Bem-estar animal do CRMV-SP, a classificação é totalmente equivocada: "Gatos são animais domésticos de estimação. Depois de tantos anos educando a sociedade e revertendo preconceitos que recaem injustamente sobre os gatos como transmissores de doenças, classificá-los como parte da fauna sinantrópica nociva é um retrocesso. E manejá-los como tal configura crime de maus tratos".
Há cerca de duas semanas, a ONG Confraria dos Miados e Latidos recebeu uma denúncia de que a SABESP, concessionária de saneamento básico do Estado de São Paulo, teria contratado uma empresa de controle de pragas para endereçar a questão de gatos vivendo em suas dependências. "Solicitamos imediatamente que o contrato fosse suspenso, para que pudéssemos fazer um levantamento do local e preparar um plano de ação, que atendesse as necessidades da empresa, mas, principalmente, tivesse como objetivo principal o bem-estar dos gatos", explica a presidente da Organização, Tatiana Sales,
Apesar de ter sido bem recebida pelos funcionários da SABESP e liberada para capturar o maior número possível de gatos dóceis para encaminhamento à adoção responsável, a ONG não conseguiu que o contrato fosse cancelado. "Mesmo a ONG tendo apresentado um dossiê completo indicando o manejo apropriado, a SABESP não julgou razão suficiente para anular o contrato assinado no dia 22/06", conta Tatiana, que completa sua insatisfação. "Ficamos muito tristes, pois não compactuamos com as práticas da empresa contratada e temos certeza de que os animais que não conseguirmos capturar sofrerão muito".
Práticas Equivocada de Manejo
Mesmo não sendo exatamente exterminados, os gatos capturados por esses prestadores de serviço têm destino incerto. Tatiana, que desde 2007 pratica atividades de manejo de gatos de vida livre, enumera os problemas: "As armadilhas não são apropriadas. Gatos dóceis e ferais precisam ter seu comportamento identificado por um especialista e direcionados de maneira apropriada. Apenas gatos dóceis devem ser removidos e encaminhados para adoção. Gatos ferais devem ser capturados, castrados, vacinados, identificados e imediatamente devolvidos ao local. Capturar gatos ferais e colocá-los em abrigos é condená-los a uma morte lenta e sofrida, causada pelo stress".
A empresa exterminadora de pragas alega ainda em seu material de divulgação, "caso passe o período de adoção e não tenhamos sucesso, será solto em local de origem". Quanto a isso, a especialista Profa. Dra. Vania alerta: "Este procedimento é completamente inadequado. Configura abandono e perturbação complexa do animal e vai na contramão de todos os procedimentos de controle populacional ético de gatos de vida livre, aceitos internacionalmente".
A ONG complementa: "Ao tirar um animal da rua, o ser humano assume total responsabilidade sobre seu bem-estar - até o fim da sua vida. Excetuada a prática de CED, em que o animal é retirado de seu local para um procedimento cirúrgico e devolvido o mais rápido possível, resgatar um animal para depois de alguns meses devolvê-lo às ruas, é abandono. E abandono é crime".
O QUE FAZER, ENTÃO?
Do ponto de vista jurídico, a advogada especializada no terceiro setor, Andressa Borelli, sinaliza a necessidade de normatização destas atividades - de uma maneira que resolva a questão da superpopulação de gatos em terrenos particulares e públicos, mas que respeite o bem-estar e a qualidade de vida dos animais: "Nossa ideia é abordar o poder legislativo e propor um projeto de lei que regulamente as práticas e que possa ser replicado em território nacional, envolvendo o poder público, as organizações do terceiro setor e a iniciativa privada".
No caso da SABESP Guarapiranga, a Confraria dos Miados e Latidos já encaminhou um dossiê completo de levantamento das colônias de gatos vivendo em suas dependências e pontuando os passos a serem tomados. "Nos resta, agora, torcer para que nossas recomendações sejam levadas em consideração e que os gatos que não devem ser removidos possam seguir na única vida que sempre conheceram: uma vida livre".
Sobre os especialistas:
Prof. Dra. Vânia Plaza Nunes Graduada em Medicina Veterinária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1983). Atualmente é Diretora técnica - Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Presidente da Comissão de Médicos Veterinários de ONGs do CRMV-SP, Idealizadora e primeira presidente da Comissão de Bem-estar animal do CRMV SP de 2007 a 2010. Médica veterinária da Prefeitura do Município de Jundiaí com experiencia na área de Controle das populações de animais, Bem-estar animal, zoonoses e vigilância sanitária, educação ambiental e Meio ambiente, de 1989 a 2015. Estruturou e dirigiu a Divisão de Controle de Zoonoses de 1989 a 2002, participou do planejamento e implantação do Jardim Botânico de Jundiai de 2002 à 2012. Criou implantou e dirigiu o serviço de controle de roedores e baratas da Dae S.A. de 2003 a 2008.
Tatiana de França Sales Presidente e fundadora da Confraria dos Miados e Latidos, Tatiana atua desde 2007 na proteção animal e foi a primeira a implementar no Brasil a prática de CED (captura, esterilização e devolução) de maneira estruturada, como método de controle ético populacional de gatos de vida livre. A Confraria possui o selo de transparência e gestão da Phomenta, único membro brasileiro do comitê internacional ICFO.
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