ONG transforma cortiços em São Paulo em casas compartilhadas
O projeto, chamado Compartilha e inédito no Brasil,
é centrado no proprietário social, que compra os imóveis, mas em termos não
especulativos. A iniciativa visa a garantir um aluguel, em média, 30% abaixo
dos valores praticados atualmente e inclui a reforma de cortiços e a assinatura
de contratos de locação que impeçam reajustes e despejos arbitrários.
Fachada do compartilhado (verde), Rua Jaraguá/Artur Duarte
Outubro de 2021 - O FICA, fundo imobiliário para
propriedade comunitária que viabiliza aluguéis acessíveis de moradias para
famílias de baixa renda do Centro de São Paulo, lança o Projeto Compartilha.
A iniciativa contempla modelos financeiro, jurídico,
administrativo e social, baseados em investimentos de impacto
social e visando à aquisição
de imóveis para destinação a pessoas moradoras de cortiços na região,
estabelecendo-os como uma casa compartilhada.
A operacionalização inclui a reforma das casas para
produzir um ambiente de qualidade e de salubridade, respaldados por contratos de locação que
impeçam reajustes e despejos arbitrários, e a diminuição dos aluguéis pagos, redução
que pode chegar a 30% em relação à média de aluguel em cortiços e pensionatos
no bairro, conforme levantamento realizado pelo Fundo Fica.
De acordo com Roberto Fontes, coordenador do
Compartilha, o modelo é inédito no Brasil por introduzir a
figura do proprietário social não especulativo (quando o dono do imóvel não
prioriza o lucro e destina sua operação para demandas sociais), a partir de
investimentos de impacto social.
O projeto faz parte da Wealth Inequality
Initiative, rede global de esforços destinados ao combate a desigualdades
sociais, que engloba iniciativas de nove países. No Brasil, foi acelerado no
LabHabitação, da Artemísia, em 2020, escolhido dentre mais de outras 1.000
ações.
Cortiço – investimento imobiliário mais
lucrativo da cidade
Segundo dados da SEADE/2004, registrados
no relatório geral do Programa de Atuação em Cortiços do governo de São Paulo,
cerca de 160 mil famílias, ou aproximadamente 596 mil pessoas, viviam em
cortiços na região central de São Paulo, o que correspondia a 6% da população
do município. Segundo Fontes, os cortiços representam atualmente um dos
investimentos imobiliários mais lucrativos da cidade, com o metro quadrado
valendo o dobro da mesma metragem em uma moradia formal em igual região.
Ele cita o exemplo de um quarto de 12 m²
com banheiro compartilhado em um cortiço no bairro do Glicério, cujo aluguel
pode custar R$ 800, equivalente
a 80% do salário mínimo. Para o proprietário, o retorno é
significativamente lucrativo, uma vez que o aluguel rende até 2% ao
mês. “O m² de um cortiço no centro pode ser mais caro que de um
apartamento de classe média alta em São Paulo”, cita.
Para Fontes, o alto faturamento contrasta
com o péssimo estado da maioria dos edifícios, sem retorno na qualidade da
construção, segurança de posse ou qualidade de vida. “Além disso, os
inquilinos não são protegidos por direitos legais e são frequentemente
ameaçados com despejos. Uma parcela significativa de cortiços é precária e
superlotada, e os valores abusivos cobrados aos inquilinos alimentam o ciclo
vicioso de violação de direitos”, destaca.
“A proposta do Compartilha busca
interromper esse ciclo com a captação de recursos para a compra de
imóveis, reforma e destinação a moradores de cortiços de forma não
especulativa, garantindo uma moradia justa a uma população historicamente
excluída do acesso ao mercado imobiliário”, completa.
Como vai funcionar
Ao contrário de outros projetos
conduzidos pelo Fundo FICA, a captação de recursos do Compartilha não será
feita por meio de doações. O
modelo é baseado em investimento de impacto social com retorno financeiro. A
rentabilidade inicial será de 4% ao ano em até 10 anos, a depender do valor do
imóvel.
O financiamento coletivo acontece com
valores a partir de R$ 10 mil e é garantido pelo próprio imóvel. “O perfil do
investidor é aquele que, primeiramente, terá orgulho do impacto de seu dinheiro
na vida de outra família. O retorno financeiro é um segundo aspecto”, explica
Fontes.
Todo o processo, desde a captação de
recursos até a gestão predial, é feito pelo Fundo FICA, cuja diretoria é
composta por arquitetos, urbanistas, engenheiros, advogados e profissionais de
comunicação, entre acadêmicos e profissionais dos respectivos mercados.
Primeira casa já pronta
Roberto Fontes posa em frente às apólices que serão entregues aos investidores da iniciativa./Lauro Rocha |
(Roberto Fontes em
frente às apólices que serão entregues aos investidores da iniciativa. Feitas
pela artista Marilá Dardot, informa os termos e os prazos do empréstimo e
trazem trechos de livros, a exemplo de A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard.)
Um primeiro imóvel foi adquirido como
parte do projeto piloto da iniciativa. O imóvel contou com o financiamento de
um grupo inicial de investidores e será alugado para três famílias que
pertencem a uma cooperativa de costureiras e que hoje residem em cortiços no
bairro do Bom Retiro. A mudança
das famílias está prevista para novembro.
A casa é a primeira de um cronograma que pode viabilizar
lares seguros para outras famílias. Segundo Fontes, os esforços
estão concentrados em oferecer novos lares para até 50 famílias em 2025, em uma primeira
fase do projeto. No entanto, salienta que o objetivo é produzir
mudanças qualitativas. “O Compartilha vai apresentar modelos de tecnologia
social e de investimento de impacto social para a aquisição dos espaços, além
de alternativas de habitação, de financiamento e de modelos jurídicos com
potencial para demonstrar para o Estado a viabilidade de políticas públicas que
saiam do convencional, que estão majoritariamente baseadas na transferência de
propriedade privada, que é a venda de imóveis”, frisa.
“Países como Holanda, Áustria e
Inglaterra têm tradição em propriedade social não especulativa, já com
resultados maduros e com muita relação com as políticas públicas. Na Holanda, por
exemplo, cerca de 75% dos 3 milhões de imóveis alugados estão em propriedade de
associações de moradia. Precisamos potencializar e colocar em prática essa
temática também no Brasil, o que vai acontecer inicialmente na região central
de São Paulo”, completa.
Mais informações em Fundo Compartilha Investimentos - FICA
(fundofica.org)
***
Sobre o Fundo Fica
Fundo imobiliário de propriedade coletiva que nasceu em 2015 para promover o acesso igualitário a moradias, baseado no uso socialmente justo da propriedade, evitando a gentrificação. É o único fundo do gênero no Brasil. Em 2017, adquiriu em comodato seu primeiro imóvel: um apartamento no centro de São Paulo no qual reside uma família que paga mensalmente um aluguel 50% abaixo do valor do mercado. Em maio de 2021, o Fundo adquiriu seu segundo imóvel, totalmente viabilizado por crowdfunding com cerca de 200 doadores. As doações para o imóvel 3 já atingiram 50% do valor necessário para a compra, devendo ser completado até final deste ano.
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