Sobre homens e ratos
Marco Antonio Spinelli *
Você não iria querer ser filho de uma
Iguana. Os répteis não costumam ter nenhum cuidado com as crias e chegam mesmo
a comê-las se derem mole. Cuidar dos filhotes e mesmo entregar a vida por eles
é coisa de espécies mais avançadas, como os Mamíferos. O fato é que a
complexidade cerebral foi criando filhotes que não nascem prontos, como os
filhotes de Iguana, que são miniaturas de adultos e dependem totalmente de seus
instintos para viver. Os mamíferos precisam de cuidados e de aprendizagem, que
vem dos adultos e do grupo a que pertencem. Perder contato com a mãe ou com o
grupo acaba sendo uma ameaça direta à sobrevivência do filhote, por isso ele é
tão claramente agarrado a quem lhe alimenta e ensina a ser um membro produtivo
da sociedade. Quanto melhor for o cuidado que esse pequeno ser tiver de seus
cuidadores, melhor será seu amadurecimento, confiança e possibilidade de
sobrevivência. Estudos hoje clássicos mostram que filhotes de rato que são mais
lambidos e tem mães mais cuidadosas serão ratos mais valentes e menos
estressados quando chegarem à idade adulta. Ratos menos cuidados e com mães
indiferentes terão menor capacidade social e menor chance de se reproduzirem. E
o que é pior: quando tiverem seus filhotes também serão descuidados e passarão
adiante essa característica de descuido e abandono. Serão também mais medrosos
e terão maior chance de doenças e morte prematuras.
Não precisamos ir muito longe para perceber
a analogia com os humanos. O filhote humano completa a sua gestação fora do
Útero materno. Precisa de muito cuidado e muita aprendizagem nos primeiros anos
de sua vida. Mães com algum tipo de doença psiquiátrica, sobretudo as não
tratadas, tem uma chance maior de gerar filhos com muitos problemas de
desenvolvimento, seja da capacidade de aprendizagem a problemas de inteligência
e inserção social. Hoje uma mãe que dá uma palmada no filho pode ir parar na
delegacia, mas a mãe que deixa a criança sem comer por doze horas, ou que fica
alcoolizada quando devia estar cuidando da casa e dos filhos nem chega a ser
notada.
Nós, humanos, precisamos muito do apoio
do Outro e dos ensinamentos que nos levarão para a vida adulta. Essa é a razão
da extrema importância que damos à nossa imagem e opinião dos pares sobre nós.
A falta dessa capacidade de aprender ou ensinar está na base de tudo o que faz
pessoas e
sociedades adoecerem. Precisamos de atenção, de cuidado e de exemplo. A falta
disso nos anos iniciais da infância pode causar estragos definitivos em homens
e ratos.
Freud trouxe à luz, no final do século
XIX, a importância dos traumas infantis na formação dos sintomas psíquicos.
Chega a ser engraçado como a Neurociência desdenha da Psicanálise mas bebe exatamente
nessa fonte, mostrando e confirmando a importância das experiências e dos
traumas da primeira infância inclusive nas populações gênicas que serão
ativadas ou não. Isso quer dizer que o Caráter não é herdado, mas aprendido. Ou
destruído pelo ambiente e as pessoas.
Quando as pessoas falam de uma cultura
corporativa ou do desenvolvimento de pessoas, não podem ignorar esses valores.
Como é importante o cuidado, a capacidade de ensinar e acompanhar o crescimento
das pessoas e corrigir seus erros. Como o exemplo gera um resultado muito mais
profundo do que os blá blá blás motivacionais. E como é importante quem está
implementando e ensinando o que as pessoas precisam aprender.
Como os ratos (e outros mamíferos), ter
um ambiente organizado e com regras claras gera menos estresse, menores índices
de Cortisol, o hormônio do estresse, e menos adoecimento físico e psíquico em
gestores e equipe. O cuidado dá lucro, em todos os níveis.
As redes sociais mostram como estamos
famintos por Atenção e Aprovação do Outro. Isso não é necessariamente ruim.
Quem exerce um papel de ser esse Outro tem um papel vital e incrivelmente
subestimado em nossa sociedade. Mães, tias, avós, professores, cuidadores, são
a base de tudo o que vai acontecer em nosso futuro. Precisamos dessas pessoas e
de seus papéis bem exercidos. Quem pode fornecer isso salva vidas e abre
caminhos para o futuro. Quem usa da autoridade para oprimir ou abandonar gera
um buraco que demanda muita gente e muito dinheiro para tampar.
Como os ratinhos, precisamos
desesperadamente de uma cultura de cuidado e de estabelecimento de confiança.
Nas famílias, nas comunidades, nas escolas, nas empresas. Não dá para esperar
isso dos governos ou dos políticos. Não dá para esperar mudanças de cima para
baixo, só de baixo para cima, e essa seria a verdadeira revolução. Em vez de
xingar o candidato, o gestor, o dono da empresa ou seja quem estiver no
comando, devemos criar alianças e culturas de transformação em nosso
microcosmo. Uma cultura de cuidado e de aprendizagem, já que somos mamíferos
tão desesperadamente carentes de aprender quase tudo, todo dia.
Só assim vamos parar de ver homens se
comportando como ratazanas.
**Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa"
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