A Literatura dos Espelhos
*por Núbia Pimentel
“Quase não
tínhamos livros em casa”, mas sempre gostei da companhia deles. Dos didáticos
nos primeiros anos de vida, dos contos de fadas e dos heróis do Ziraldo em
minha meninice, afastando-me das narrativas no ensino médio, quando fui para
uma escola sem biblioteca, onde nunca solicitavam leituras extraclasses. Foi
quando caí no mundo das
revistas, enciclopédias e autoajuda. A poesia nesse tempo se limitou ao
cercadinho dos estudos bancários para a prova do vestibular. Ensino sucateado,
ausência de leitores ao meu redor e “a cidade não tinha livraria”, exatamente
como na canção “Livros” de
Caetano Veloso. Nunca entendi ao certo como se deu minha atração genuína pela
literatura.
Foi assim que cheguei à faculdade de Letras, uma
amante de livros com limitações para assimilar clássicos literários. Só depois de ler “Cidade de Deus” que me reconectei com a narrativa, deixei de temer os
clássicos e passei a consumir romances. A obra de Paulo Lins não só me tocou
pela estética, como pela riqueza de detalhes familiares à minha vivência. Mais
tarde, quando me encontrei com “Quarto de Despejo” de Maria Carolina de Jesus, tive uma verdadeira epifania
poética, pois reconheci na subjetividade daquela narrativa de mulher preta a
minha subjetividade.
Ora! Mas a arte não é realidade, e sim,
sua recriação! E isso significa que o artista, dominando a sua linguagem, é
capaz de traduzir os mais diversos mundos? Sim! Por outro lado, só quem morou
um uma favela pode traduzir sensorialmente a diferença entre o cheiro do esgoto
que entra na casa nos dias quentes daquele dos dias frios.
A título de exemplo, Patrícia Melo é
brilhante quando escreve “Inferno”, mesmo sem ter sido uma “cria” de
comunidade, mas só Paulo Lins pode exprimir com suntuosa sinestesia a
sonoridade de um tiroteio. Particularidades da escrita dos dois autores que,
arrisco dizer, será mais perceptível a quem experencia esse contexto bélico
contidamente.
E que diferença isso faz, uma vez que
tudo é literatura? Sim, é certo que ambas as
obras são valiosas! É
certo também que estando a arte inserida na
realidade, ela pode ter uma função social. E quando alguém se reconhece em um
texto, por meio dessa ou daquela sensação familiar, essa experiência produz o
sentimento de pertencimento capaz de transformar existências coletivas. E isso
também é arte! As pessoas querem se ver, sejam por meio de espelhos físicos ou
artísticos.
O que prende um leitor a uma obra é
sobretudo o sentimento de pertencimento a uma experiência humana, ainda que por
meio das mais impensáveis formas de linguagens. Haja vista o disparo nas vendas
do já citado “Quarto de Despejo”
nos últimos anos “coincidirem” com a implementação da política de cotas nas
universidades. Assim como se deu na minha trajetória, a representatividade na
literatura pode ser um investimento na formação de cidadãos leitores! Sendo
assim, se faz urgente que reconheçamos e valorizemos nossos autores negros de
uma vez por todas!
Núbia Pimentel é pós-graduada em Letras, professora de português para estrangeiros, atriz e autora do lançamento “Silêncio de Marias”.
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