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O Instigante momento que procede as existências é mote da exposição Hiância

Mostra da artista Eva Castiel e Bruno Ferreira, ocupa as salas expositivas da Oswald de Andrade

Hiância reúne dois trabalhos contíguos dos artistas Eva Castiel Bruno Ferreira, sob a curadoria de Jurandy Valença, que ocorrem na Oficina Cultural Oswald de Andrade em setembro de 2021. O título da exposição é inspirado em um conceito que descreve o intervalo entre o que não existe e o que está na iminência de existir.
Esse intervalo se manifesta em uma série de pares: entre o ser e o não-ser, o natural e o artificial, a sombra e a luz, o estável e o impermanente. Essas duplas se vinculam através de uma dinâmica oscilante. Encontram-se aparentemente imóveis, mas mantêm a tensão de um abalo latente.
A hiância é aquilo que por se situar em uma fenda produz paradoxos, é o reconhecimento de que há algo que nos rodeia, que não alcança a lógica das imagens simbolizáveis. 
Na primeira sala da instalação, um conjunto de cadeiras são suspensas por cabos de aço, e movimentam-se de forma imprevisível, acompanhadas por uma composição sonora.
Na sala seguinte, deparamo-nos com uma mesa, coberta por uma areia que se expande pelo espaço. Ainda sobre essa mesa, uma série de copos se agitam acidentalmente, formando vórtices na água contida em seu interior. Também é possível escutar, nesse ambiente, o som de soluços respiratórios.
Quando se apresentam tais contingências, nossa noção temporal se estilhaça, tentamos recolher os cacos, mas não sabemos bem o que fazer com eles. Os elementos de que se lança mão carregam essa sensação de descontinuidade, e apontam para um desejo que pode surgir do desamparo.
Mobilizados por um sentimento de mundo ferido e danificado, onde a sociabilidade se reduziu a poeira, nos perguntamos como é possível encontrar singularidades em meio a um espaço pulverizado.
Hiância permanece em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade de 4 a 25 de setembro.

Sobre os artistas:
Eva Castiel nasceu em São Paulo, no ano de 1944. Pintora e escultora, iniciou sua formação em artes no final da década de 70, sob orientação de Ana Maria Barros, Hedva Megged, Nair Kremer, Carmela Gross e Carlos Fajardo. No ano de 1990, estuda com Menashe Kadishman em Nova York. Trabalhou em ateliês de artistas como Ubirajara Ribeiro e Magliani. Sua primeira exposição individual ocorre em 1981 na Galeria Suzanna Sassoun, em São Paulo. No decorrer dos anos 90, realiza diversos workshops e desenvolve um trabalho frequente com instalações das quais destacam-se Sweet Dreams, no Paço das Artes e Habitar, e instalação criada para o Centro Cultural Caixa Econômica Federal. Em 2000, participa da criação do Espaço Virgílio, destinado a exposições, workshops e showroom de materiais, e fez parte do grupo de artistas paulistano Casa Blindada entre 2000 e 2006.
Bruno Ferreira (1986, São Paulo/SP) é artista visual, formado em Audiovisual na UFSCar e em Artes Visuais na USP. É Mestre em Poéticas Visuais pela USP, com período de intercâmbio na Université de Paris VIII. Desenvolve trabalhos em escultura, pintura, vídeo e instalação, com foco na exploração das noções de vida, seus aspectos de artificialidade e animalidade, observando como os traços da sociedade ocidental viajam através dos corpos. Participou do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo com a exposição Dioramas. Já expôs em salões e mostras coletivas no Centro Maria Antônia, na Casa de de Dona Yayá, no Museu de Artes de Ribeirão Preto, no Espaço das Artes, no SESC Ribeirão Preto e na Galeria Vermelho.

Exposição: Hiância
De: Eva Castiel e Bruno Ferreira
Curadoria: Jurandy Valença
Data: de 4 a 25 de setembro
Oficina Cultural Oswald de Andrade
Rua Três Rios, 363 - Bom Retiro - São Paulo/SP
Visitação: De segunda a sábado, a partir das 12h às 16h. (Permanência máxima de 45 minutos).
Entrada Gratuita
Texto do curador:
A hiância de todos nós

Tem uma frase do austríaco Peter Handke, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2019, que diz muito para mim sobre o que é uma obra de arte. "Daquilo que os outros não sabem sobre mim, disso eu vivo”. Afinal de contas, em uma obra de arte cabem muitas coisas, significados, questões, mas nem sempre respostas. A história da arte abriga em suas inúmeras obras criadas desde a antiguidade até a contemporaneidade, vazios, lacunas, ocos, faltas. Essa lembrança da frase do Handke ecoa nos trabalhos apresentados na exposição “Hiância”, que reúne dois trabalhos contíguos de Eva Castiel e Bruno Ferreira que, juntos, formam uma grande instalação que ocupa a galeria da Oficina Cultural Oswald de Andrade, espaço que é referência há 35 anos na cultura da cidade de São Paulo.

A palavra que dá título à mostra é um termo oriundo da psicanálise que significa o intervalo entre o que não existe e o que está prestes a existir; um espaço subjetivo e [a]temporal que abriga alguma coisa ainda não realizada ou inexistente. Uma fenda, buraco, tropeço, surpresa, rachadura, uma vacilação. A hiância em si abriga uma função que é a do impossível. O que se produz nela -- uma vez apresentado - perde-se novamente, ou seja, é de uma temporalidade que se apresenta como uma descontinuidade.

Eva Castiel e Bruno Ferreira presentificam essa alteridade nos dois trabalhos criados para a exposição. Na primeira sala da galeria, um conjunto de cadeiras estão suspensas por cabos de aço e movimentam-se de forma imprevisível acompanhadas por uma composição sonora na qual é possível ouvir uma série de ruídos entre uma melodia que se repete. Na sala seguinte deparamo-nos com uma mesa coberta por uma areia que se expande pelo espaço e na qual - sobre ela - estão dispostos uma série de copos que se agitam de modo imprevisto formando vórtices na água contida em seu interior. Também é possível escutar nesse ambiente, nessa situação, o som de soluços, dessa súbita e involuntária tomada de ar.

Aproximações e intervalos

“Hiância” também aproxima dois artistas de gerações completamente diferentes, com décadas de diferença, mas cujas respectivas produções têm um ponto de contato muito presente, a instalação. Eva Castiel, cujo trabalho acompanho há mais de dez anos, e que pode ser visto no livro “Estrangeira” (2018) que reúne grande parte de sua produção, iniciou sua formação em artes no final da década de 1970, sob orientação de nomes como Ana Maria Barros, Hedva Megged, Nair Kremer, Carmela Gross e Carlos Fajardo. Pintora e escultora, ela incorporou no decorrer de sua pesquisa visual outras mídias em sua produção, como a fotografia, o vídeo e instalações. Em seu trabalho há sempre um interstício, o pequeno espaço entre as partes de um todo ou entre duas coisas contíguas. É nesse espaço que sua obra dialoga e transita. Anos atrás, quando conversávamos sobre os trabalhos que exibiria em uma exposição curada por mim, ela afirmou que sempre procura em sua obra pensar nos interstícios. “Não pretendo me instalar neste ou naquele, mas no entre”.

De outra geração, Bruno Ferreira é Mestre em Poéticas Visuais pela USP, com graduação em Imagem e Som pela UFSCar, e em Artes Visuais pela ECA-USP. Já participou de exposições no Centro Maria Antônia; no CCSP, que tem um dos mais relevantes editais de arte do país e onde foi premiado; de exposição no Sesc Ribeirão Preto, e da mostra Verbo, na Galeria Vermelho, em São Paulo. Sua pesquisa poética é mobilizada pelas relações entre o humano, o não-humano e o meio-ambiente. Sua produção opera em várias linguagens como vídeo, cinema, escultura, objeto, instalação, desenho, pintura, e muitas de suas obras se materializam como híbridos dessas linguagens. Seu trabalho abriga algo de estranho, de inusitado, e que é atravessado – de certa maneira – pelo surrealismo. No seu vocabulário visual, Bruno também usa o humor e a cor, que são elementos importantes na sua produção. Entre diversas camadas dos mais variados materiais, texturas que atraem e parecem repelir o toque, ele cria obras nas quais o corpo e a natureza são eixos para esculturas, objetos ou instalações que remetem às formas orgânicas, às metamorfoses visuais nas quais a mudança de formas constitui um grande palimpsesto de referências da história da arte.

As duas instalações criadas por ambos e reunidas em “Hiância” ecoam de alguma maneira um trabalho criado por Eva há mais de 20 anos, “Gessado”, uma instalação composta por 2.600 toalhas enroladas em uma parede, e uma mesa prateada, que tanto parecia ser de autópsia ou de interrogatório, em uma sala branca extremamente iluminada com luz branca. A obra monocromática emanava uma assepsia e um desassossego estéril e deixava o visitante desconfortável naquela sala que nada tinha de intimidade. A mesma sensação reverbera nessas obras exibidas aqui e agora.

Nachleben

“Hiância” me traz à lembrança a palavra alemã Nachleben, que significa literalmente pós-vida, e cujo conceito foi expandido pelo historiador de arte alemão Aby Warburg (1866-1929). Para ele, essa “pós-vida” é como uma metamorfose que abriga plasticidade e maleabilidade, mudança das formas; e que posteriormente o filósofo francês Georges Didi-Huberman traduziu o termo como “sobrevivência”. De alguma forma Eva e Bruno reverberam o pensamento warburguiano articulando um “movimento que constitui-se de coisas que são, ao mesmo tempo, arqueológicas (fósseis, sobrevivências) e atuais (gestos, experiências)”. Como diz Leopoldo Waizbort na apresentação do livro “Histórias de Fantasmas para Gente Grande”, que reúne conferências, esboços e escritos de Warburg, “as imagens jamais estão fechadas em si mesmas, como mônadas”, um conceito-chave na filosofia de Leibniz, que se traduz como algo “único”, “simples”.

Uma tensão fértil e oscilante

Eva e Bruno concebem em “Hiância” figurações de situações constituídas de tipologias instáveis por intermédio de uma cenografia e uma coreografia visual. O intervalo espacial que se manifesta e separa as duas instalações faz com que uma espelhe a outra, como pares que confundem a geometria euclidiana, plana e espacial, e que criam - concomitantemente - espaços de não só de representação e contemplação, mas também – e principalmente – de reflexão. Entre o ser e o não-ser, o “natural” e o artificial, os sons e os movimentos, o estável e o impermanente, as obras se vinculam através de uma dinâmica oscilante. Encontram-se aparentemente imóveis, mas mantêm uma tensão fértil e latente na qual a oscilação é fundamental ao demonstrar que é movimento, que detém uma dinâmica própria, que não é estática, assim como a vida.

O tempo atual, do hic et nunc, é de barbárie e desalinho, mas também é um tempo de amálgamas. [Sobre]vivemos em um mundo e uma época cheia de fissuras e polarizações, de uma ausência sempre presente, no qual uma pandemia matou e alterou para sempre a vida de milhões de pessoas. Quando se apresentam tais contingências somos todos atingidos e mobilizados por um sentimento de um mundo no qual a hiância é o lugar de [im]possibilidades. Do não sabido, do pensar o que não é ainda, do devir. Um mundo onde a arte e a ciência são campos de ações que se [des]equilibram entre as ficções e as fricções, e no qual as singularidades irrompem pelas faltas, pelos furos, pelos ocos. Parafraseando Nietzsche ao citar em uma de suas obras o filósofo grego Parmênides, “não se pode pensar o que não é. Situados no outro extremo, dizemos: o que pode ser pensado é certamente uma ficção”.



Jurandy Valença, agosto de 2021

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