Derrapada irresponsável do Senado no marco das ferrovias
José Manoel Ferreira Gonçalves*
Foi um duro golpe para quem defende o resgate do sistema ferroviário nacional. No último dia 5 de outubro, 33 anos após a histórica sessão que trouxe à luz o atual texto constitucional, o Senado aprovou o projeto de lei que ficou conhecido como o novo marco legal das ferrovias.
A principal mudança
proposta pelo PL, que agora vai a plenário na Câmara dos
Deputados, é a adoção
da chamada modalidade de “autorização” em oposição ao tradicional modelo de
concessão, pelo qual o Estado estabelece as metas para a operação dos atuais
trechos ou construção de novas linhas. Concessões pressupõem licitações, pelas
quais o governo tem a oportunidade de exercer sua prerrogativa de fazer valer
os interesses estratégicos da nação, ou seja, fazer política pública voltada para
o uso amplo e democrático da ferrovia, hoje muito distante de ocupar o papel a
ela reservado em países continentais como o nosso – o de integração e motor
para o desenvolvimento nacional.
Com a permissão à
autorização, empresas privadas poderão assumir a operação de ferrovias apenas
para atender a seus interesses, sem se importar com o uso público dos trens ou
mesmo admitir a possibilidade de que outros operadores privados possam empregar
a infraestrutura – pública, em sua natureza – para também transportarem
produtos e matérias-primas.
Hoje, as ferrovias
brasileiras estão praticamente restritas à logística de grãos e minério de
ferro. Itens essenciais como produtos alimentícios e medicamentos – que
poderiam ser transportados por trilhos, com custo menor do que o praticado no
transporte rodoviário, em uma redução passível de ser repassada para o
consumidor – estão fora das ferrovias e sujeitos à alta de combustíveis e ao
humor dos caminhoneiros que ameaçam a normalidade do país com greves cada vez
mais frequentes. E essa situação pode piorar com o sistema de autorização. Quem
já domina as ferrovias deve se perpetuar com a exploração do bem público por
mais décadas a fio. A lógica do lucro vai prevalecer. O transporte de
passageiros, por sua vez, estará definitivamente condenado.
Com a aprovação célere
desse marco legal, o Senado foi de uma enorme irresponsabilidade com o
interesse comum. A decisão exime o Estado de exercer seu papel de formulador
das políticas públicas. Transporte é estratégico. É dever do Estado e direito
do cidadão. Énecessário que tenhamos ações integradas que permitam a ampla
utilização das ferrovias, com segurança e extensiva a toda a população, e que
elas possam ser um fator de integração nacional. Essas diretrizes precisam vir
de Brasília. Qualquer ato que fira os direitos do cidadão deve ser considerado
inconstitucional.
Diante dessa exploração
privada e destituída de interesse comum do patrimônio público que se afigura
com o marco das ferrovias, entraremos com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
para questionar os princípios de tão inoportuna lei.
O Brasil precisa de
ferrovia para todos, e não apenas para alguns escolhidos.
*José Manoel Ferreira Gonçalves é engenheiro e presidente da Ferrofrente (Frente Nacional pela Volta das Ferrovias)
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