Alinhamento entre Regras de Negócio e Legislação Tributária
* Por Sérgio Irigoyen e
Vasco Trindade
No Brasil, o consumo é
tributado pelos impostos ICMS, de competência estadual, o qual incide
basicamente sobre a circulação de mercadorias, e o ISS , de nível municipal,
com incidência a partir da prestação de serviços realizada por empresas e
profissionais autônomos. Em outros sistemas tributários, como aquele da
Comunidade Europeia, o consumo, em contraste, é tributado por um único imposto,
o Imposto sobre Valor Agregado — IVA, que incide, via de regra, no destino
final de bens e serviços. Ele tem caráter nacional em contraposição às acima
indicadas competências estaduais e municipais respectivamente de ICMS e ISS.
Por meio dessa
sintética comparação entre o sistema brasileiro de tributação do consumo com
aquele europeu, pode ser facilmente identificada a disfuncionalidade da
tributação nacional no tocante a negócios que combinem bens e serviços, para
contratos de maior complexidade, nos quais cada contratante pode prestar
serviços, fornecer bens ou ambos. Com efeito, a configuração tributária
nacional cria dúvidas interpretativas quanto ao tributo incidente em vários
negócios jurídicos e, inclusive, ao ente tributante competente para cobrar o tributo
(Estado ou Município; qual Estado e qual Município). O cenário de insegurança
quanto a tais operações já se verificava na economia tradicional, como são
provas as controvérsias jurídicas até hoje existentes sobre a tributação de
negócios convencionais tais como a industrialização por encomenda.
Esse quadro de
obscuridade, contudo, veio a ser acentuado com os novos negócios surgidos no
ambiente digital ou híbrido. Veja-se, por exemplo, um modelo de negócios que
envolva a distribuição de produtos online
por uma determinada empresa com o suporte e a própria intermediação
por uma segunda empresa offline.
Tanto as empresas podem estar localizadas em Estados e Municípios diferentes,
quanto a aquisição de produtos podem ocorrer diretamente com a Empresa 1 ou por
meio da Empresa 2, bem como cada uma das empresas pode também prestar serviços,
surgindo apenas do arranjo de tais alternativas, uma dezena de questões sobre o
imposto incidente e sobre o ente tributante competente, que são dificultadas
pela menor clareza no enquadramento tributário das atividades online.
Diante da falta de uma
compreensão clara da matéria inclusive pelas autoridades fazendárias, cabe às
empresas se anteciparem no estabelecimento de um alinhamento claro entre as
regras de negócios adotadas com a legislação tributária. A correta qualificação
da natureza jurídica de cada obrigação em uma operação comercial é
indispensável, assim como a classificação seja identificável no fluxo
financeiro e nos procedimentos de conciliação do negócio, a fim de reduzir o
risco de descaracterização das operações por parte da fiscalização tributária
com base em sua incorreta representação. Os recursos tecnológicos disponíveis
poderiam tornar a adoção de tais sistemáticas custosa e complexa, mas o mercado
já oferece soluções aptas a gerenciar digitalmente tais controles.
A tecnologia aplicada à
camada transacional dos negócios é um exemplo de solução identificada para o
problema exposto. Além das já tradicionais preocupações na escolha de um
fornecedor para o fluxo transacional, seja no tocante ao nível de flexibilidade
para aplicação do plano de negócio, seja às suas segurança e disponibilidade, a
questão fiscal tributária demanda dos gestores um cuidado especial nesta tomada
de decisão.
A necessidade por
infraestrutura transacional escalável e adaptável a cada modelo de negócio, que
permita ao Ecossistema ser proprietário do seu fluxo financeiro, acompanhando o
ciclo de vida das transações, do princípio ao fim, agnóstico ao formato de
entrada (seja dinheiro, PIX, cartões e boleto), e livre para seguir as vocações
financeiras planejadas, são demandas que determinaram o surgimento de um novo
player no mercado, as techfins.
Com as techfins sendo
responsáveis pelo provimento da infraestrutura para negócios que gerenciam
fluxo financeiros massivos, de terceiros, e nos mais diversos formatos entre
produtos e serviços, temos na tecnologia um aliado para que os modelos de
negócio tenham a visibilidade e granularidade necessária em seus controles
financeiros. Alia-se isso ao avanço gradual na interpretação tributária pelos
órgãos fazendários dos negócios digitais. Por exemplo, por meio da Solução de
Consulta Cosit n.º 170, de 27 de setembro de 2021, a Receita Federal reconhece
que empresa dedicada à intermediação de vendas de mercadoria na internet deve
ser tributada apenas na comissão que cobra dos parceiros que expõem na
plataforma.
De todo modo, ainda
acompanhamos com frequência a promoção pelas autoridades fazendárias de
interpretações tributárias prejudiciais aos contribuintes exatamente com base
na falta de clareza nos registros e fluxos financeiros de seus negócios.
Torna-se muito mais simples para o Fisco defender um posicionamento
desfavorável do contribuinte quando confronta no outro polo uma empresa que não
pratica com clareza o que apregoa. Em nossa visão, o correto entendimento das
próprias atividades desenvolvidas sob o prisma tributário aliado com a clara
implementação de tal entendimento nos fluxos e conciliações financeiras é a
abordagem mais eficaz para a diminuição da insegurança jurídica no recolhimento
de impostos em um sistema tributário disfuncional como o brasileiro.
* Sérgio Irigoyen é CEO
da Slice, graduado em Administração de Empresas pela UFRGS (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul). Possui 19 anos de experiência na área
administrativa de grandes instituições financeiras como Banco Votorantim, HSBC
e Bradesco. Também trabalhou como tesoureiro na TIMAC Agro Brasil e em 2020, em
parceria com o executivo Rafael Brasil, fundou a Slice.
* Vasco Maestri Trindade é sócio na Altemo Advogados, graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e com MBA em Mestre de Administração de Negócios pela The University of Hong Kong. Possui mais de 10 anos de experiência na área de direito, já atuou nas empresas Silveiro Advogados, IEE - Instituto de Estudos Empresariais e na Junior Achievement RS.
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