Brasil: vitória contra a Covid, derrota contra a corrupção
Imagine a hipótese de um governador de estado, detentor de foro privilegiado, investigado pela Polícia Federal por suspeita de uso indevido de recursos federais, ser indiciado, denunciado pela Procuradoria Geral da República, e, ter a denúncia recebida por decisão de mais de oito ministros do Superior Tribunal de Justiça, tornando-se réu por crimes como fraude em licitação, peculato, dispensa irregular de licitação e embaraço à investigação.
Imagine, agora, uma
situação na qual, mesmo já sendo réu em processo-crime, esse governador não é
afastado do cargo. Ele, então, decide se filiar a um novo partido e se
apresentar como pré-candidato à reeleição. Admitindo-se que seu nome seja
aprovado pela convenção partidária, esse governador terá sua campanha eleitoral
financiada em parte pelo Fundo Eleitoral, aprovado no Orçamento da União e
originado de recursos do contribuinte. E, em tese, terá garantida certa
vantagem no pleito, não apenas porque seu partido – por critério de tamanho da
bancada no Congresso Nacional – terá à disposição uma fatia desse fundo, mas
também porque ele, na condição de candidato, irá dispor de generoso tempo no
Horário Eleitoral Gratuito de rádio e televisão, igualmente custeado pelo contribuinte,
e poderá fazer sua campanha sem a necessidade de se afastar do cargo para
concorrer a um novo mandato.
Por mais incoerente que
possa parecer, esse governante, respondendo a processo-crime por desvio de
recursos públicos, irá receber novos recursos públicos para gastar em sua
campanha destinada à conquista de mais um mandato. Tudo dentro da lei.
Nessa hipótese,
faltando no máximo oito meses para as eleições, dificilmente seu processo será
julgado até essa data. Se vencer a eleição e vier a ser condenado e
posteriormente afastado do cargo – improvável em razão do grande número de
recursos previstos na legislação processual e diante da proibição da prisão
mesmo após condenação em segunda instância, já definida pelo STF -, assumirá o
vice-governador. E é sabida a pouca importância que o eleitor brasileiro
dispensa à figura do vice na hora do voto, sequer se lembrando do seu nome
passados poucos meses da eleição. Cultura que, em nome da boa democracia,
precisa ser mudada em um país no qual três vices assumiram em definitivo a
Presidência da República após a redemocratização: José Sarney, com a morte de
Tancredo Neves, e Itamar Franco e Michel Temer, com os impedimentos de Fernando
Collor e Dilma Rousseff, respectivamente.
Esse quadro se desenha
dentro da legalidade, porém contraria a ética, a moralidade e o bom senso. É
impossível ao cidadão comum aceitar que um acusado por desvio de recursos
públicos – após investigação da Polícia Federal e do Ministério Público que
viram indícios suficientes para instauração de inquérito e oferecimento da
denúncia – tenha à sua disposição ainda mais recursos do erário, ou seja,
dinheiro do contribuinte, para gastar com livre discricionariedade.
Eis um dos males que
afetam o Brasil: a falta de legislação mais rígida e mais célere para o
julgamento de agentes públicos, necessária porque eles foram investidos da
confiança do cidadão para ocupar seus cargos eletivos. Lamentavelmente, o
arcabouço jurídico atual permite situações como aquela tratada aqui
hipoteticamente. Admite também que um governador, há anos condenado pelo STJ,
permaneça no cargo enquanto seus recursos dormitam à espera de julgamento no
STF. Essa disputa jurídica nas instâncias superiores, apoia-se muitas vezes em
chicanas processuais para retardar o processo e levar o caso à prescrição,
tornando inútil todo o trabalho dos investigadores e as provas colhidas, e, por
fim, garantindo a impunidade.
Se o sistema judiciário
dispõe de legítimos mecanismos de garantia do contraditório e da ampla defesa,
a fim de se evitar a condenação injusta de inocentes, por outro lado é preciso
que o Brasil crie instrumentos legais de resposta mais ágil e efetiva para a
proteção da população e do erário contra gestores públicos envolvidos com atos
de imoralidade administrativa, sem que isso represente qualquer ameaça ao
princípio constitucional de presunção da inocência.
Essa leniência com que
o Brasil trata os atos de corrupção corrói a democracia, desacredita as
instituições, alimenta a sensação de impunidade e drena os cofres públicos.
Nosso país está
conseguindo vencer a pandemia da Covid-19, porém segue despreparado para vencer
a corrupção, que também mata, em proporção gigantesca e muito maior que a
pandemia, ao provocar a falta de atendimento médico, de comida na mesa, de
merenda escolar, de saneamento básico, de muito mais. A vacina mostrou-se
eficaz para salvar vidas na pandemia. Falta ao Brasil criar uma vacina capaz de
produzir anticorpos contra o mal da corrupção, para salvar a democracia e os
ideais republicanos. E ela pode ser tríplice, com cepas da drástica redução do
foro privilegiado, da possibilidade de prisão após condenação em segunda
instância, e da imprescritibilidade dos crimes de corrupção.
O Brasil, num grande
pacto envolvendo Executivo, Legislativo, Judiciário e a sociedade civil,
precisa, urgentemente, trabalhar por reformas que moralizem a administração
pública e deem uma resposta firme e efetiva para quem pensa que pode
administrar uma cidade, um estado ou o país como um balcão de negócios. Em uma
nação de tamanhas carências, não há mais espaço para a imoralidade. O eleitor
mais incauto pode se deixar enganar, iludido por falsas promessas e campanhas
milionárias, mas o voto não legitima a improbidade.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). É autor do livro “Brasil, um país à deriva”.
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