Complexo de Messias
Marco Antonio Spinelli*
Alguns dias depois da
bofetada na noite do Oscar, Will Smith internou-se voluntariamente numa
Clínica Psiquiátrica para Reabilitação. Um amigo me ligou para me dizer que
minha avaliação estava correta. No dia seguinte à cerimônia do Oscar eu escrevi
sobre sua atitude e sintomas contidos em seu discurso, para mim indicativos de
que ele estava precisando de ajuda com uma certa urgência. Meu amigo e colega
leu o texto e me falou que eu iria queimar a minha língua, que aquilo tinha
sido uma armação para devolver o Oscar às manchetes. É um programa decadente,
que premia uma indústria hoje fragmentada em vários canais de streaming. O
escândalo serviria para chamar atenção sobre o evento. A análise que eu fiz
viraria piada. Eu achei que não viraria piada, e não virou.
Vivemos numa Sociedade
do Espetáculo, onde um mendigo que transa com uma mulher em surto psicótico
pode virar uma celebridade e beijar influencers na balada. Não dá mais para
traçar a linha entre o Real e a encenação. Tudo parece roteirizado, até a
morte. O importante é criar impacto e canalizar a atenção, até o próximo evento
escandaloso. Somos uma aldeia global sedenta de cliques e likes.
Denzel Washington, um
cara que tem a confluência rara de ser um artista espetacular e um homem
íntegro e integrado às suas qualidades e defeitos , chamou Will Smith de canto
depois da bofetada e falou, na citação do próprio Will: “Tome cuidado. Você
está no momento de maior brilho. É nessa hora que o Diabo vem atrás de você”.
Nenhum terapeuta poderia ter falado melhor. Pela lei da Compensação, quando
estamos no ponto mais alto que se faz necessária a maior humildade. Não é
fácil. O sucesso tem a característica inebriante de fazer seu portador se
identificar com ele. O escritor Jorge Luís Borges escreveu: “Bem Aventurado
aquele que aceita a vitória e a derrota com a mesma serenidade”. Mais uma vez
eu digo: não é fácil. A tendência normal é ficar inflado nas vitórias e destruído
nas derrotas.
Um terapeuta junguiano
diria que o demônio que possuiu Will Smith é a Identificação com o Arquétipo.
Vou traduzir o palavrão.
Arquétipos são matrizes
fundamentais de nossa cultura e Psique. Figuras que aparecem em todas as
Mitologias: a Mãe, o Pai, o Herói, o Salvador, a Bruxa, o Perseguidor, a Mulher
Fatal. Preste atenção a seus sonhos, que esses arquétipos estão sempre por lá.
Os filmes, os contos de fada, os reality shows, as neuroses familiares, todas
as metáforas que nos regem derivam dos Arquétipos. A moça em surto psicótico
viu uma divindade no homem em situação de rua, possuída por essa inundação
psíquica.Os Arquétipos estão dentro de nossa Psique e projetados nas fotos do
Instagram. Eles são matrizes de formação de Consciência, e viram monstros
quando queremos encarná-los. Esse o sinal claro que Will Smith estava doente.
Em seu discurso, ele falou que estava sobrecarregado pelas tarefas que Deus
colocava para ele. Ele desejava ser um Rio para seu povo. Uma luz para o mundo.
Proteger a sua família dos abusos que sofrem as pessoas relevantes. E por aí
foi. Ele estava inflado por essa fantasia de Salvador. De ser a Luz para
o Mundo.
Alguém poderia, e
deveria perguntar: isso é errado? É errado querer inspirar pessoas, fazer
filmes com mensagens construtivas, num mundo em que o Caos parece sempre estar
ganhando? Posso encher a boca para falar: isso não é errado, claro que não.
Ainda vou escrever sobre as imensas qualidades do filme “King Richard”e da
interpretação de Will Smith que lhe deu um merecido Oscar. Sem dúvida que a
mensagem transmitida pelo filme é de Esperança e de Mentalidade de Crescimento.
Pena que tudo isso foi manchado por uma bofetada num colega vinte quilos mais
magro que ele. E por que? Porque ele se investiu da posição de Protetor de sua
família. De Portador de Luz para seu povo. Essa identificação, muito
provavelmente turbinada pelo seu estado, compatível com um colapso de algumas
capacidades psíquicas, geraram a cena que vai ficar marcada, sobreposta ao que
seria o ponto mais alto de sua jornada. Ao se proclamar o grande Protetor,
acabou deixando todos os seus protegidos expostos ao massacre da mídia.
Massacre muito pior que a piada de Chris Rock.
Nossa vida pode ser
inspirada pelos melhores projetos, pelas melhores intenções. É muito bom que
seja assim. Mas é mais protetor pensar que somos instrumentos de uma ideia
maior que nós, não que somos a encarnação dessa ideia.
Pode parecer estranho,
mas acolher o sucesso com cuidado e simplesmente aceitar que ele veio depois de
um longo processo de busca e de aperfeiçoamento é dom muito mais maduro e sutil
do que podemos imaginar. No filme, o personagem de Will Smith, Richard
Williams, tem uma briga feia com suas filhas depois de uma vitória, pois
ficaram contando vantagens no carro, voltando para casa. Ele falou para as
meninas, depois de obrigá-las a assistir o vídeo da Cinderela: quando virar uma
Princesa, não se esqueça de onde você veio.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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