Ex-companheiro pode pedir usucapião em nome próprio quando exerce posse do bem comum sem oposição do outro
Por Alex Satoshi Nakata*
No julgamento do Recurso Especial n.
1.840.561/SP, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a
relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, proferiu acórdão estabelecendo
que ex-companheiro que exerce a posse sobre imóveis comuns, sem nenhuma
oposição do outro, pode pleitear a usucapião em nome próprio.
A questão posta para julgamento orbitava
em torno da definição da natureza da posse exercida por um dos ex-cônjuges
sobre as frações ideais de imóveis pertencente ao ex-casal, após a dissolução
da sociedade conjugal, mas sem que tivesse havido a partilha dos bens, a
ensejar a aquisição da propriedade, pelo cônjuge possuidor, da totalidade da
fração ideal por usucapião.
No caso julgado pelo STJ, a autora, em
2007, moveu a ação de usucapião na modalidade extraordinária em desfavor de seu
ex-marido, pedindo o reconhecimento da sua propriedade sobre a fração ideal de
15,47% de 42 unidades autônomas situadas em um edifício na cidade de São Paulo
(SP). Para tanto, argumentou que se casou com o réu em 1970, tendo se
divorciado em 1983 sem, contudo, realizar a partilha dos bens comuns. Mesmo
após o divórcio, manteve-se na posse exclusiva dos imóveis por mais de 23 anos,
sem que houvesse qualquer insurgência do seu ex-marido.
O pedido da autora foi julgado
procedente em primeiro grau e confirmado pelo Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, sob o fundamento de que o condômino tem legitimidade para usucapir
em nome próprio, desde que exerça a posse exclusiva do bem comum, com animus domini, e sejam
atendidos os requisitos legais da usucapião.
Contra o acórdão proferido pela Corte
Bandeirante, o réu interpôs recurso especial defendendo, dentre outras
matérias, que o coproprietário, enquanto na administração da fração ideal dos
imóveis comuns (alugando-os a terceiros), não exerce posse ad usucapionem, por mais
longa que seja essa posse; e que a atuação da autora – na condição de
administradora da fração ideal dos imóveis – constitui ato de mera detenção,
não se caracterizando como posse para fins de usucapião.
Ao julgar o recurso, o relator,
mininistro Marco Aurélio Bellize, asseverou que restou incontroverso nos autos
a posse da autora por lapso temporal aquisitivo superior a 20 anos (de 1983,
ano do divórcio, até 2007, ano do ajuizamento da ação), de modo que o imbróglio
da lide recaia exclusivamente sobre natureza da posse exercida pela autora
sobre os imóveis não partilhados, se ad
usucapionem ou não.
Para confirmar a natureza ad usucapionem da posse por
ela exercida, fundamentou o relator que a dissolução da sociedade conjugal,
seja através da separação ou do divórcio, cessa o estado de mancomunhão dos
bens comuns e, enquanto não partilhado o imóvel, a propriedade do casal sobre o
bem rege-se pelo instituto do condomínio (v.g.
STJ, REsp 1.375.271/SP, 3.ª T., Rel.: Min. Nancy Andrighi, j. 21/9/2017). Por
consequência, cada condômino deve responder ao outro pelos frutos que percebeu
da coisa, nos termos do art. 1.319 do Código Civil.
Em outras palavras, a administração do
bem imóvel por um dos condôminos, ainda que implicitamente, pressupõe o rateio
das despesas e o repasse dos frutos advindos da coisa aos demais condôminos.
Na hipótese sob julgamento, contudo,
embora os imóveis estivessem alugados, todos os rendimentos eram percebidos com
exclusividade pela autora e sem que houvesse qualquer reinvindicação dos frutos
e tampouco pedido de prestação de contas por parte do réu, que desde o término
da relação conjugal se manteve inerte.
Isto é, após o fim do matrimônio, houve
completo abandono, pelo réu, das frações ideais pertencentes ao ex-casal sobre
os imóveis usucapidos pela autora, que não lhe repassou nenhum valor
proveniente dos alugueres, tampouco o réu o exigiu.
E, justamente por inexistir repartição
dos frutos ou pedido de prestação de contas pelo réu, afastou-se a tese por ele
defendida, segundo a qual a autora, por todo esse tempo, estava desempenhando
função de administradora dos bens condominiais, nos termos do art. 1.324 do
Código Civil.
Desse modo, rechaçou-se o argumento
defendido pelo réu, segundo o qual a autora, ao alugar os imóveis, abriu mão de
sua posse ad usucapionem,
sob o fundamento de que o art. 1.238 do Código Civil exige, para a
caracterização da usucapião extraordinária, apenas a posse do imóvel com ânimo
de dono, nada indicando que essa posse seja, necessariamente, plena, de forma
que inexiste óbice ao reconhecimento da usucapião em favor do possuidor
indireto que efetivamente exerce essa posse.
Não se revela incompatível, portanto, a
posse indireta com o requisito anímico daquele que age na intenção de ter a
coisa para si, sobretudo porque o desdobramento da posse plena decorre, em
regra, de ato do possuidor pleno que, cedendo a outrem (possuidor direto) o
exercício de parte dos atributos inerentes ao seu domínio, passa a se qualificar
como possuidor indireto.
Nesses termos, concluiu o ministro que a
posse da autora sobre os imóveis era exercida com ânimo de dona (animus domini) e sem
qualquer oposição dos demais coproprietários, o que conferiu à sua posse a
natureza ad usucapionem,
a legitimar a procedência da usucapião em face dos demais condôminos que
abriram mão dos seus direitos sobre os bens.
O posicionamento adotado pela Terceira
Turma nesse julgamento não foi isolado, prevalecendo no Superior Tribunal de
Justiça o entendimento de que o condômino tem legitimidade para usucapir em
nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que
comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido
exercida posse exclusiva com efetivo animus
domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos
demais proprietários (v.g. STJ, REsp n. 668.131/PR, 4.ª T., Rel.: Ministro Luis
Felipe Salomão, j. 19.8.2010; STJ, REsp 1.631.859/SP, 3.ª T., Rel.: Ministra
Nancy Andrighi, j 22.05.2018; STJ, AgInt no REsp 1.787.720/CE, 4.ª T., Rel.:
Ministro Raul Araújo, j. 27.09.2021; e STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 750.322/MG,
3.ª T., Rel.: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 24.10.2017).
*Por Alex Satoshi Nakata, advogado no escritório Medina Guimarães Advogados. Pós-graduado em LLM em Direito Empresarial pela FGV.
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