Por que precisamos falar mais sobre segurança viária?
Estudos continuam a indicar que os
determinantes de um sistema viário seguro não são poucos e só o debate pode dar
conta de todos eles
Por
Luis Fernando Villaça Meyer e Vitor Magnani*
O mundo tem olhado a segurança viária
com preocupação nas últimas décadas. De acordo com dados da Organização Mundial
da Saúde, mais de um milhão de pessoas perdem a vida no trânsito por ano em
todo o globo, sendo a maior causa de morte de jovens entre 10 a 19 anos. No
Brasil, foram quase 400 mil pessoas que perderam suas vidas no trânsito entre
2010 e 2019, segundo dados do Ministério da Saúde.
Deslocar-se pela cidade não deveria ser
motivo de risco de vida para ninguém. Mas de que forma podemos caminhar à
chamada “Visão Zero”, princípio cunhado na Suécia na década de 1990, segundo o
qual nenhuma morte no trânsito é aceitável, e evitar que essas mortes e lesões
graves ocorram? Frente a essa verdadeira pandemia, a ONU estabeleceu a Década
de Ação pela Segurança no Trânsito entre 2011 e 2020, buscando fomentar que
governos ao redor do mundo instruíssem políticas e práticas que reduzissem ao
menos pela metade as mortes no trânsito. No entanto, essa meta não foi
alcançada na maior parte dos países, de forma que a iniciativa foi prorrogada
para uma segunda década até 2030.
Diferente do que tradicionalmente se
entendia, hoje sabemos que a responsabilidade pela segurança viária não está
relacionada apenas ao comportamento das pessoas caminhando ou conduzindo seus
veículos na cidade. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada, onde
fiscalização, sinalização e engenharia, dentre outros fatores ligados à política
pública e à ação do Estado, também têm papel fundamental. É preciso mudar o
padrão tradicional de que a responsabilidade deve recair sobre quem se
locomove.
Pesquisas realizadas pelo International
Transport Forum da OCDE e pelo WRI Ross Center em anos recentes já demonstraram
que cidades que incorporaram a abordagem dos Sistemas Seguros foram mais
efetivas e eficazes na redução das mortes no trânsito. Essa abordagem
transforma o paradigma tradicional e entende que o sistema de mobilidade deve
ser concebido de forma a reduzir riscos de morte e lesão grave quando ocorre um
sinistro de trânsito.
Os Sistemas Seguros reconhecem que as
pessoas cometem erros, mesmo que de forma involuntária, e que o sistema de
mobilidade deve antecipar estes erros para evitar uma tragédia. Em outras
palavras, entende que uma boa cidade “perdoa” esses erros ao invés de penalizar
a pessoa com uma lesão grave ou morte. Mas é um grande desafio levar isso a
cabo, ainda mais em um momento histórico no qual as cidades se adensam, se consolidam
e a mobilidade se transforma com grande rapidez.
Frente a este desafio complexo, em um
mundo onde a oferta de dados e tecnologia cresce progressivamente, não é apenas
possível, mas imperativo compreender como a cidade e suas ruas estão
construídas, como os deslocamentos acontecem na cidade, e as relações entre os
sinistros e as características viárias de onde eles ocorrem. Só assim poderemos
efetivamente incorporar a abordagem dos Sistemas Seguros para direcionar
melhores políticas públicas, programas e obras para caminharmos em direção à
meta de zerar mortes no trânsito.
Compreender estas dinâmicas para
elaborar soluções inovadoras bem contextualizadas e embasadas é um exercício
que vem sendo promovido por organizações como o Instituto Cordial, realizador
de estudos e iniciativas como o Painel da Segurança Viária em parceria com
diversas cidades brasileiras, buscando colaborar com seus desafios específicos
em segurança viária.
O Instituto apresentou recentemente o
estudo “Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo: uma análise da
infraestrutura, viagens e segurança viária na cidade”, realizado em parceria
com o Movimento Inovação Digital (MID), organização que busca integrar empresas
do meio físico e digital com ações públicas e privadas de fomento de
tecnologias. Uma das conclusões do estudo é que, para além das conhecidas
desigualdades sociais, as características das ruas, dos deslocamentos e a
distribuição dos sinistros de trânsito também são muito desiguais nos 96
distritos de São Paulo, implicando desafios muito diferentes nas diversas
regiões da cidade.
O estudo mostrou que a largura das ruas,
considerando tanto as calçadas quanto a área asfaltada, é significativamente
maior nos distritos do centro expandido que de outras regiões da cidade. Isso
se dá em função da forma como São Paulo foi urbanizado ao longo do tempo, fato
que também se relaciona com a atual concentração de empregos e serviços nestas
regiões centrais, gerando o enorme movimento pendular que milhões de pessoas
fazem todos os dias entre casa e trabalho. Não por acaso, como também
demonstrado no estudo, nestes distritos centrais se concentra a maior parte das
viagens realizadas a pé, de bicicleta, de carro, de moto e de ônibus em São
Paulo.
De acordo com a ONU-Habitat, em sua publicação
“Streets as public spaces and drivers of urban prosperity”, a distribuição dos
espaços da cidade e a conectividade de ruas são fatores que ajudam a explicar a
prosperidade de uma cidade. Diz que sistemas de vias mais densos e conectados
estão entre as características de cidades mais prósperas, analisando diversas
localidades do mundo e comparando-as a um Índice de Conectividade de Ruas.
Analisando de forma inédita os distritos
da cidade de São Paulo com os indicadores que compõem este índice da ONU-Habitat,
o estudo realizado pelo Instituto Cordial demonstrou que, mesmo que as ruas dos
distritos centrais sejam normalmente mais largas, o indicador “Terra Alocada
para Ruas” (LAS, no original) possui patamares médios a altos também em
distritos de fora do centro, onde as ruas são mais estreitas. Além disso,
demonstrou que o indicador “Densidade de Interseções” (SID, no original) é mais
alto em distritos periféricos, especialmente na Zona Leste da cidade.
Assim como no caso dos distritos
centrais, estas características dos distritos de fora do centro também podem
ser explicadas por seus perfis históricos de urbanização, resultando em grande
densidade de vias e cruzamentos, mas com predomínio de ruas estreitas que
desembocam em poucas vias arteriais muito grandes, com grandes carregamentos e
infraestrutura de transporte coletivo, como a Radial Leste. Ou seja, se
teoricamente não falta espaço e há boa conectividade, em boa parte dos
distritos da cidade não necessariamente isso se reverte em um município melhor,
mais próspero ou mais seguro para seus habitantes.
Enquanto a maior parte dos empregos e
deslocamentos se concentram nos distritos centrais onde há ruas mais largas,
seria razoável supor que neles também se concentram mais sinistros de trânsito.
Dos mais de 124 mil sinistros ocorridos entre 2013 e 2019, há distritos que
agregam mais de 3 mil sinistros enquanto outros não passam de 40.
Entretanto, a partir de simulações para
estimativa da quantidade de viagens que passam por cada distrito, realizadas a
partir dos dados da Pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo, o estudo
apresenta que há menor concentração de sinistros para cada 100 mil viagens nos
distritos no centro expandido do que fora dele. Enquanto nos distritos centrais
este indicador varia entre 6 a 20 sinistros para cada 100 mil viagens, no
restante da cidade ele varia de 9 a 38.
Ruas estreitas, calçadas estreitas,
grande densidade de vias e de cruzamentos, mesmo com quantidades moderadas de
sinistros de trânsito e baixas de deslocamentos em comparação com as áreas
centrais, deixam claro como os desafios de mobilidade urbana e segurança viária
são distintos entre os distritos da cidade de São Paulo. As soluções do passado
e mesmo aquelas bem-sucedidas em áreas centrais não vão resolver os novos
desafios que se apresentam em outras regiões da cidade.
Para zerar as mortes no trânsito, é
preciso inovar e agir de forma coordenada, compartilhando responsabilidades com
base em políticas públicas bem embasadas, conhecendo e considerando as realidades,
especificidades e desafios locais. Não é possível pensar a cidade do futuro sem
conhecer profundamente a cidade do presente. Novos elementos de infraestrutura
e inovações em segurança viária e em serviços urbanos devem levar em conta
estes desafios para que nossas cidades se desenvolvam para serem mais justas,
seguras e sustentáveis.
*Luis Fernando Villaça Meyer é diretor
de operações do Instituto Cordial e Vitor Magnani é presidente do Movimento
Inovação Digital (MID).
Sobre o MID:
O Movimento Inovação Digital (MID) é
uma entidade que reúne as principais plataformas da economia digital, incluindo
marketplaces, e-commerces, healthtechs, bancos digitais, fintechs, meios de
pagamento e investidores. O MID existe para representar e abordar
interesses coletivos relacionados à economia digital e plataformas. Para isso,
busca estimular ações públicas e privadas que contribuam para o desenvolvimento
e fomento dessas tecnologias, por meio da articulação com outras instituições.
Atualmente, a entidade reúne mais de 140 associados, entre eles: Mercado Livre,
Quinto Andar, Loft, 99, GetNinjas, PayPal, Loggi, Movile, Americanas, Facily,
Rappi, Tembici, OLX, WorldPay, Hotmart, Saude iD, Maida.Health, Hash, Adiq,
PaySmart, Dr. Consulta, Banco PAN, Grupo Mosaico, Leroy Merlin, banQi, Porto
Seguro, Whirpool, Banco Carrefour, Monetizze, Tecban, entre outras.
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