Norma sancionada pelo Governo 'revoga' Lei do Descanso e amplia riscos de acidentes nas rodovias
Dispositivo incluído no programa de renovação
da frota impede autuação por descumprimento do tempo máximo consecutivo ao
volante
“Na prática, a Lei do
Descanso perde o efeito”. A afirmação do diretor científico da
Associação Mineira de Medicina de Tráfego, Alysson Coimbra, reflete a gravidade
da sanção, pelo presidente Jair Bolsonaro, do Programa de Aumento da
Produtividade da Frota Rodoviária no País (Renovar), em vigor desde 2 de
setembro. A MP pretendia criar incentivos para a renovação da frota de veículos
do transporte rodoviário de cargas, algo extremamente importante, mas recebeu a
chamada emenda 'jabuti', com a introdução de um artigo que delibera sobre a
fiscalização do cumprimento da jornada de trabalho desses motoristas e em nada
tem a ver com o tema original. Em tempo recorde de tramitação no Congresso
Nacional a MP foi aprovada sem nenhuma contestação e seguiu para sanção
presidencial sem vetos.
A partir de agora as
autoridades de trânsito não podem mais autuar motoristas que desrespeitarem o
tempo máximo permitido ao volante caso não haja Pontos de Parada e Descanso
(PPD) nas proximidades. Os 78 mil quilômetros de rodovias federais brasileiras
têm 41 PPDs registrados no Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (DNIT). Em média, um a cada 1.848 quilômetros. Dados da Confederação
Nacional dos Transportes indicam, pelas condições de conservação das rodovias,
que a velocidade média dos caminhões nas estradas brasileiras é de cerca de 40
km/h, metade da registrada na Europa. “Nessa
média de velocidade, um caminhão poderia levar até 46 horas entre um PPD e
outro, o que significa que casos absurdos como já vimos, de motoristas
flagrados dirigindo mais de 24 horas consecutivas, não seriam mais punidos”,
explica Alysson Coimbra.
Vista
aérea de estacionamento para caminhoneiros
Essa Lei segue na linha
de medidas que buscam amenizar a dificuldade do poder público em reduzir os
custos dos insumos para os caminhoneiros, principalmente com o diesel que segue
estagnado em um dos valores mais altos do ano. Paralelamente não foi bem aceito
pela categoria o auxílio caminhoneiro tanto por causa do valor insuficiente
para conter a inflação no setor de transportes, quanto pela sua brevidade, uma
vez que o última parcela será paga em dezembro.
O problema passa pelo
pequeno público que é prestigiado com essa nova lei em detrimento do prejuízo
aos demais integrantes do Sistema Nacional de Trânsito. “O número de motoristas infratores no
Brasil não chega a um por cento, segundo dados oficiais. Esse é o único público
beneficiado pela medida, que aumenta muito o risco de acidentes nas rodovias
brasileiras para todos, inclusive para os 99% que dirigem com prudência”,
alerta.
Regras e
segurança
A Lei do
Descanso determina que caminhoneiros são proibidos de passar mais de cinco
horas e meia ao volante sem interrupção. No caso dos ônibus e vans, esse limite
é de quatro horas. A lei também limita a jornada diária em 12 horas, incluindo
os períodos de intervalo obrigatório. Entre um dia e outro de trabalho é
preciso ter, no mínimo, 11 horas de pausa.
O diretor científico da Ammetra, Alysson
Coimbra
O descumprimento dessa
lei mais que triplicou no primeiro semestre deste ano. O aumento foi de 218% na
comparação com 2021. Foram 50.467 autuações neste ano, contra as 15.825 no
mesmo período de ano passado. “Nesse
mesmo período os preços dos insumos dispararam e o diesel se tornou o mais caro
dos combustíveis pela primeira vez na história. Os profissionais estão se
obrigando a dirigir cada vez mais tempo para garantir um rendimento mínimo. Em
vez de melhorar as condições para eles, o governo manobra para facilitar a
impunidade”, acredita Coimbra.
Retrocesso
grave
O médico
de tráfego explica que 90% dos sinistros de trânsito são provocados por falha
humana. “Temos uma soma
potencialmente fatal: excesso de jornada que causa o cansaço extremo e induz o
uso de estimulantes para tentar permanecer acordado. Isso eleva o risco de
falha humana, justamente de profissionais que dirigem 5% da frota de veículos
do país, mas que, quando falham, respondem por 47% de todas as mortes nas
rodovias. É um retrocesso que certamente aumentará o número de mortos e
feridos”, alerta Alysson Coimbra.
A nova lei atribui à
Polícia Rodoviária Federal (PRF) a função de revisar a relação Pontos de Parada
e Descanso e indicar o número de vagas disponíveis em cada localidade. “A lei também estabelece que, mesmo se
houver um PPD na região, o motorista não é obrigado a parar para descansar caso
o local esteja com todas as vagas ocupadas. Todas as medidas só dificultam o
trabalho da PRF na segurança viária”, acrescenta.
Verba
negligenciada
Outro
ponto conturbado da lei na visão de especialistas e entidades que atuam em
segurança do trânsito é a utilização de recursos do Fundo Nacional de Segurança
e Educação de Trânsito (FUNSET) para custear a renovação das frotas, podendo
prejudicar os já escassos recursos para investimentos em infraestrutura e
segurança viária. “Há mais
de 16 anos existe um contingenciamento irresponsável dos recursos do Funset,
que, se aplicados de acordo com a finalidade correta, reduziriam a letalidade
do trânsito. O sistema nacional de trânsito está exaurido por causa das
inúmeras intervenções político eleitoreiras que enfrentou, está na hora de
parar de jogar para a plateia e trabalhar com responsabilidade pela preservação
do bem mais precioso que possuímos: nossas vidas”, finaliza o
diretor científico da Ammetra.
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