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Eventos climáticos extremos são desafios para saúde mental da população e para o sistema de saúde

MSF tem trabalhado no suporte e treinamento de profissionais que atendem vítimas de desastres

*Nádia Duarte Marini

Cada vez mais, o Brasil tem vivenciado um grande número de situações em que chuvas e inundações ocasionam gigantescas perdas humanas e materiais. Estes eventos climáticos extremos atingiram diversos Estados e municípios no final de 2021 e ao longo do primeiro semestre de 2022. MSF atuou em três destes episódios recentes, em parceria com os trabalhadores do SUS (Sistema Único de Saúde) e das Secretarias de Saúde municipais e estaduais.

O trabalho ocorreu nos municípios de Itabuna (BA) e Petrópolis (RJ), em fevereiro, e em dois municípios de Pernambuco, Recife e Jaboatão dos Guararapes, em junho. As equipes da organização testemunharam de perto a tragédia na vida das pessoas, inclusive os impactos na saúde mental de quem sofreu com os eventos climáticos, e sabe que, infelizmente, as indicações são de que estes fenômenos tendem a se tornar mais frequentes.

Nestes locais, MSF concentrou sua atuação em atendimentos e treinamentos de saúde mental para trabalhadores envolvidos na resposta às catástrofes socioambientais. Para além da necessidade de socorro e atenção médica que é mais evidente logo depois dos desastres, nos dias, semanas e meses posteriores é preciso assistir e acompanhar as demandas por apoio psicológico da população. O trabalho realizado por MSF incluiu atividades de capacitação focadas em saúde mental para os profissionais de saúde, educação e assistência social, além de lideranças comunitárias.

As equipes que estiveram nestas localidades logo após os episódios críticos observaram a população dividida entre chorar o luto pela perda de seus entes queridos e uma certa indignação, pelo senso compartilhado de que as tragédias já eram anunciadas. Celeridade e respostas adequadas do poder público aos desalojados e benefícios assistenciais aos que necessitam contribuem positivamente para uma recuperação mais rápida, assim como a falta desse apoio prolonga a vivência do luto coletivo, podendo levar ao adoecimento psíquico. ­Costumamos pensar que apenas os profissionais da saúde mental podem tratar de quem sofre. De fato, esses profissionais têm um papel importante na prestação deste tipo de cuidado, mas é importante treinar outros profissionais e membros da comunidade, ampliando a capacidade de resposta local.

Os resultados têm sido positivos. Muitos de nossos colegas do SUS apontam o quanto as formações de MSF sobre saúde mental e desastres os têm orientado na prática cotidiana. Apesar de viverem em regiões frequentemente afetadas por enchentes e deslizamentos de terra, poucos receberam formação específica sobre o tema.

Temos percebido também, em nossos projetos, que a saúde mental do trabalhador de saúde nunca foi tão testada. Cuidar bem dos profissionais da linha de frente, o bem mais precioso de um sistema de saúde de qualidade, é condição essencial para que possam cuidar da população. Isso também ficou ainda mais evidente durante a COVID-19.

As chuvas extremas do último verão pegaram o sistema de saúde e os profissionais já exaustos pela pandemia. Se nos tornamos mais resilientes por um lado, por outro mal nos demos conta das dores e marcas psíquicas que permanecem latentes nos profissionais de saúde em todo Brasil.

 Nesse cenário, a exposição ocupacional de alto impacto psicológico no atendimento às vítimas e sobreviventes se soma ao fato de que os profissionais muitas vezes são afetados diretamente pelo desastre, perdendo suas casas e entes queridos. As consequências são sentidas especialmente por aqueles que trabalham no território onde vivem, o que ocorre com trabalhadores da atenção primária e com agentes comunitários.

Isso causa uma sobreposição de necessidades. A de atender suas próprias demandas e as do sistema público, que na situação de calamidade requer deles um trabalho intensivo em caráter emergencial para socorrer a população. É urgente implementarmos fluxos de cuidado adequados para os nossos profissionais do SUS, da saúde como um todo, dos trabalhadores dos serviços essenciais, assim como prepará-los tecnicamente para lidar com a gestão integral dos riscos e desastres.

Também é inegável que as mudanças climáticas têm afetado a vida humana e a sua perspectiva de futuro. A catástrofe é anunciada e será cada vez mais intensa em nosso país e no mundo, principalmente se não mudarmos a maneira de encarar o tema. No caso específico das inundações em Pernambuco, a correlação entre a tragédia e as mudanças climáticas foi atestada por especialistas da World Weather Attribution Initiative, e há fortes indícios de que estes fenômenos estão se tornando cada vez mais frequentes. Paralelamente, a própria OMS (Organização Mundial da Saúde) tem chamado a atenção para impactos das mudanças climáticas cada vez mais fortes e duradouros não somente na saúde física das pessoas, mas também na saúde mental.

Nossa experiência nestes dois últimos anos deixou muito claro que diante da perspectiva da intensificação de fenômenos climáticos extremos, não podemos simplesmente esperar que o desastre ocorra e só agir depois. Embora a intensificação destes fenômenos já seja uma realidade, fomos surpreendidos pela notícia de que para o Orçamento Federal do próximo ano, a proposta é de um corte de 99% nos recursos voltados para obras emergenciais, redução e mitigação de desastres naturais. O valor de investimento caiu de R$ 2,8 milhões para irrisórios R$ 25 mil, o que é insuficiente.

Como organização humanitária de emergência, estamos convictos de que o custo de não trabalhar com a prevenção tem sido alto demais para a vida, a saúde e o bem-estar psicológico de todos nós. Não há tempo a perder.

*Nádia Duarte Marini é psicóloga de Médicos Sem Fronteiras.

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