Há 10 anos a cerveja brasileira não era ‘puro malte’
Milho
era utilizado nas receitas sem informar consumidor e, após descoberta, mercado
cresceu 10 vezes em uma década
Neste mês de outubro se
comemora dez anos de uma descoberta nem tão revolucionária, porém, escandalosa.
A informação foi encoberta por muitos anos devido a uma legislação que permitia
substituir até 50% da cevada, que deveria ser utilizada na composição da
cerveja, por ‘cereais não maltados’. Na grande maioria das vezes, essa troca
era feita por milho. Mas tudo não passava de uma suspeita. Além disso, pairava
a dúvida sobre a lisura dos fabricantes.
A prova comprovatória só
chegou depois de um estudo produzido em Piracicaba/SP, cidade que virou palco
de uma infeliz coincidência, visto que o município é conhecido pelas melhores
pamonhas do Brasil. O quitute, por sua vez, é feito com o “mais puro creme do
milho verde”.
Pois bem, a pesquisa foi
realizada por cientistas do laboratório de Ecologia Isotópica, do Centro de
Energia Nuclear na Agricultura (Cena), localizado em um dos campi da Universidade
de São Paulo (USP), que abriga esse renomado instituto especializado de
tecnologia avançada.
Mas essa história começou
um pouco antes, na vizinha cidade de Campinas e em uma instituição tão renomada
quanto o Cena, quando o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), publicou um artigo no jornal Folha
de S. Paulo denunciando a ‘malandragem’. O texto foi intitulado “A cerveja:
bebendo gato por lebre”.
Com isso, o professor
levantou a hipótese de que a bebida nacional teria uma concentração de
componentes não maltados, o caso é o milho, muito mais alta do que deveria para
ser chamada de cerveja. Isso porque de acordo com a norma autorregulatória da
indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta exclusivamente por apenas três
elementos: cevada, lúpulo e água - sendo o fermento um agente interveniente.
O termo malte designa a
cevada germinada, mas ele pode substituir a cevada total ou parcialmente. A
malandragem começava quando os rótulos das mais diversas marcas de cerveja
utilizavam a expressão ‘cereais maltados’ ou, simplesmente, ‘malte’,
dissimulando a natureza do ingrediente principal na composição da bebida. Com a
aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria cervejeira podia
optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.
A história intrigou o
professor Luiz Antonio Martinelli, que se embrenhou em um hercúleo estudo para
desvendar o que realmente havia a mais na composição química da bebida. O
extenso trabalho de pesquisa analisou 77 marcas do produto, incluindo 49
cervejas produzidas no Brasil e 28 importadas, fabricadas na Europa, nas
Américas do Sul e do Norte, além da China. Na época, o estudo foi publicado com
exclusividade pela revista científica ‘Journal of Food Composition and
Analysis’ e assinado pela bióloga Sílvia Mardegan, aluna de mestrado orientada
por Martinelli.
“A imprensa mudou o viés do
release publicado pela assessoria de imprensa, porém a surpresa foi positiva,
pois foi após essa ampla divulgação que o consumidor descobriu que realmente
havia algo de diferente nas cervejas. A partir daí houve uma conscientização
que até então não existia, as pessoas começaram a discutir cerveja e a pesquisa
contribuiu para incentivar o mercado das artesanais”, lembrou o professor.
O resultado de uma das
análises químicas mais completas já feitas com marcas de cerveja do Brasil e do
exterior não chegou a surpreender, pois apenas confirmou o que já era sabido e
que estudos menores já indicavam. Todavia, a pesquisa comprovou que as grandes
marcas nacionais tinham elevadas quantidades de milho em sua composição, embora
a matéria-prima tradicional da bebida fosse a cevada.
“A publicação do estudo
provocou uma revolução no mercado, mas que já estava pronto para isso. A pesquisa
com o isótopo funcionou, na verdade, como um catalisador que os marqueteiros
das cervejarias souberam aproveitar”, afirmou Martinelli. “Isso é fato, tanto
que a indústria cervejeira percebeu rapidamente e explorou isso, pois a partir
dali estava surgindo um nicho de mercado, até então, pouco explorado”,
completou.
Apesar de contestado pela
indústria, que alegou dizendo que o produto brasileiro era um dos melhores do
mundo, o professor justificou que o trabalho não avaliava a qualidade da
bebida, ou se a cerveja era pior por conter milho, mas apenas a quantidade de
substâncias existentes em sua composição química.
“Graças a esse estudo, hoje
temos um consumidor muito mais consciente. Infelizmente não há como
quantificar, e nem temos como mensurar esses números, porém, a percepção em
relação ao que está consumindo é nítida e, mesmo que opte por comprar cerveja
com milho, agora o consumidor faz isso de forma consciente”, sentenciou.
Embora a indústria tenha
negado o resultado da pesquisa, fato é que logo depois o termo ‘puro malte’
passou a ocupar lugar de destaque nas prateleiras dos supermercados e as
cervejas artesanais começaram a ganhar mais espaço no mercado cervejeiro.
“Posso afirmar
tranquilamente que a pesquisa com os isótopos acabou funcionando como um selo
de qualidade da cerveja. Os rótulos tiveram que mudar e ‘confessar’ as
substâncias que existiam no produto”, disse Martinelli.
Cerveja de referência
Usada como referência na
pesquisa que desvendou a utilização de milho na cerveja, a Cevada Pura também
foi uma das marcas produzidas no Brasil e avaliadas pelos cientistas durante os
estudos.
“Naquele período não havia
tanta disponibilidade de marcas de cervejas artesanais nas gôndolas dos
mercados e a proximidade de acesso ao produto da cervejaria piracicabana foi
providencial para usá-la como referência, estabelecendo o padrão para se fazer
as comparações”, lembrou o professor Martinelli.
Na época da publicação, a
pesquisa constatou ainda que das 49 marcas brasileiras, além da própria Cevada
Pura, apenas Baden Baden, Colorado, Eisenbahn, Heineken, Paulistânia, Schmitt e
Therezópolis eram cervejas com alto teor de cevada.
“Me lembro bem quando a
pesquisa foi divulgada e aquilo caiu como uma bomba no mercado, mas não sabia
que a Cevada Pura tinha sido a cerveja padrão da pesquisa. Ao recordar de tudo
o que aconteceu me dá mais orgulho de saber que já estávamos no caminho certo”,
afirmou Alexandre Augusto Peres Moraes, Xandão, criador e proprietário da marca
que acaba de completar 21 anos.
Coincidências à parte, três
estilos da cervejaria Colorado utilizadas na pesquisa, Appia, Cauim e
Demoiselle, tinham sua produção terceirizada na fábrica da Cevada Pura, em
Piracicaba.
“Estamos no mercado há mais
de 20 anos e até a primeira metade desse período a produção de cervejas no
Brasil ainda era muito restrita às grandes marcas. Pouco se falava das
artesanais e as cervejas mais conhecidas eram as tradicionais de processos
industriais. Porém, de lá pra cá, houve um boom no surgimento de
nanocervejarias e microcervejarias. A reportagem da Folha de São Paulo, em
2012, foi um divisor de águas no mercado”, lembra Xandão da Cevada, como gosta
de ser chamado.
A Cevada Pura nasceu com
capacidade produtiva de oito mil litros/mês e, já na época da publicação do
estudo, produzia 40 mil litros/mês. Atualmente, a produção da cervejaria
piracicabana gira em torno de 150 mil litros/mês.
Cervejarias no Brasil
aumentaram 10 vezes em uma década
Divulgado em agosto pelo
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Anuário da
Cerveja apontou um crescimento de 12% no número de cervejarias registradas no
Brasil no ano passado. O levantamento diz respeito a 2021, quando o país
registrou 1.549 cervejarias. Em 2020 havia 1.383.
O levantamento é realizado
desde o ano 2000, quando o país possuía apenas 40 registros. Em 2009, esses
números atingiram os três dígitos e, em 2012, ano de divulgação do estudo que
desvendou a utilização de milho na cerveja, o levantamento do Mapa apontava 157
cervejarias registradas no país. Ou seja, em uma década, o número de
cervejarias no Brasil multiplicou-se por 10.
“Apesar de ser um setor que vem crescendo há duas décadas, é
fato que o segmento de cerveja, principalmente artesanal, no Brasil, começou a
crescer significativamente a partir de 2010, quando o consumidor passou a
enxergar nesse produto uma forma de apreciar essa bebida com mais qualidade do
que as cervejas convencionais”, avaliou Xandão.
Os números do Mapa ilustram bem o crescimento exponencial registrado
na época, tanto que em 2011 o aumento foi de 13,2% e, a partir de então, em
relação ao ano anterior, o ano de 2012 apresentou crescimento de 21,7% e o
setor continua em franca expansão por anos seguidos: em 2013 = 24,2%; 2014 =
31,8%; 2015 = 29,2%; 2016 incríveis 48,5%.
Nos
três anos seguintes, o setor de cervejas apontou crescimento superior a 30%,
cravando 37,7% (2017), 30,9% (2018) e 36% (2019). A partir daí, apesar de
permanecer em dois dígitos, este percentual mostrou desaceleração visto que de
2019 para 2020 o número de estabelecimentos aumentou em 14,4% e de 2020 para
2021 cresceu 12,0%, mas isso se deve, em parte, a pandemia de Covid 19.
Entrando no mercado puro
malte
Aproveitando o momento de
crescimento desse mercado, o Centro Cervejeiro Brew Center, que produz desde o
ano 2000, diversificou a linha de produtos com o início da produção de cervejas
artesanais.
“Nosso processo de produção
cervejeira possui 22 anos e, a partir de 2017, decidimos entrar de cabeça no
mercado de puro malte. Afinal quanto mais oferta melhor para o consumidor”,
afirmou Nirlei Baungartner, que produz para diversas cervejarias, além de
fabricar suas próprias marcas como a Villa Alemã, St. Patrick's Beer e Audax,
essa última exclusiva para sócios assinantes do Clube Cervejeiro Brasil.
Localizada na cidade de
Ipeúna, interior de São Paulo, a Brew Center produzia 80 mil litros há dez anos
e, atualmente, a produção atinge a casa dos 300 mil litros/mês, o equivalente a
quase 400% de aumento. “O movimento do puro malte começou há 10 anos e
reconheço a importância do estudo, pois isso nos fez dar uma guinada na
produção para acompanhar o mercado. Mas sem investimento em novos e modernos
equipamentos não atingiria a qualidade que temos hoje”, concluiu Nirlei.
Iniciando
uma fabricação caseira, em 2010 a brasagem da Brotas Beer não passava de 50
litros. Dois anos depois teve início sua produção industrial, passando a
produzir três mil litros ao mês e, no ano seguinte, com a entrada de um novo
sócio, a cervejaria da cidade de Brotas/SP expandiu e hoje sua capacidade é de
55 mil litros/mês.
“Entendemos
que o aumento do segmento cervejeiro, no Brasil, começou a crescer
significativamente a partir do momento que o consumidor passou a ter mais
informações e descobriu novos produtos. Há uma década, o brasileiro só conhecia
Pilsen e Weiss. Porém, hoje a oferta de novos estilos é muito maior e a
qualidade faz a diferença entre as marcas que vem surgindo no mercado”, disse
Marcio Egea Secafin, proprietário da Brotas
Beer ao explicar o aumento das cervejarias no país.
Gerente
comercial da Berggren Bier, da cidade de Nova Odessa/SP, Fernando Leite,
afirmou que a cervejaria iniciou sua produção na época do grande salto do
mercado cervejeiro. “Estamos completando 13 anos, exatamente quando tivemos o
surgimento de muitas cervejarias no Brasil e essa ascensão aconteceu de forma
muito forte devido o nível de conhecimento que se passou a ter através de mais
informações sobre esses produtos. Isso gerou o interesse maior dos consumidores
e provocou um crescimento exponencial nesses últimos 10 anos”, explicou Leite.
Apesar do grande crescimento registrado nos
últimos 10 anos, o gerente comercial da Brotas Beer, Paulo Bettiol, tem um
olhar mais reticente. “Muitas cervejarias estão surgindo, entretanto o conceito
de artesanal está sendo utilizado indevidamente, pois houve uma invasão de
cervejas puro malte trazidas pelas grandes industrias cervejeiras e isso é
saudável para o consumidor, mas não para a concorrência. Porém, para continuar
crescendo é preciso organizar e regular o mercado com regras e uma legislação
específica que permite com que o crescimento seja justo para todos”, sentenciou
Feijão, como é mais conhecido.
Infelizmente,
por meio de sua assessoria de imprensa, o Mapa informou não possuir dados
específicos sobre as cervejarias artesanais. Mesmo assim, é importante destacar
que o número de cervejarias é uma medida para acompanhar a evolução das
microcervejarias, que representam cerca de 90% desta quantidade de fábricas do
país, segundo o próprio ministério.
Texto: Marcelo Basso
Fotos de Paulo Ricardo Santos
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