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A Ciência e a tradição africana

Autor lançou recentemente o livro "Tião Cacete e os 16 Odus Sagrados - Uma aventura afrotupiniquim", obra inspirada nos deuses do Candomblé.

A ciência é a grande disciplina organizadora e validadora do mundo atual. Isso vale para a maior parte da humanidade, mais ou menos organizada em torno do sistema de produção capitalista. Capitalismo e ciência andam de mãos dadas há muito tempo, o capitalismo sempre dependente da inovação e a ciência sempre realizando inovação.

Uma nação ou outra funciona com adaptações específicas, mas boa parte da organização social do mundo inteiro acaba estabelecendo a mesma rotina na vida das pessoas. E o dia a dia das pessoas é o que mais importa, é o que estabelece a cultura e molda as visões de mundo.

O cotidiano do trabalho é praticamente o mesmo: o sujeito dedica boa parte do seu dia em uma atividade laboral em algum modo de produção privado ou estatal e a globalização planifica e padroniza as atividades ao máximo possível.

O trabalho é praticamente o mesmo no mundo todo. Mas em casa é diferente. É na vida pessoal, no tempo dedicado a si, que o sujeito vai vivenciar a sua cultura e nesse momento é quando a diversidade dos povos se evidencia. É quando emergem as cosmovisões tradicionais arraigadas.

Na rua há pouca escapatória. É a ciência que vai classificar, ordenar e validar tudo o que acontece no âmbito institucional e oficial das nações. Fora da ciência, qualquer pensamento, ideia, ideologia ou teoria estarão sempre em cheque.

A verdade é que a ciência é mesmo muito boa para isso, por uma simples razão: a ciência trabalha com a realidade. O método científico nada mais é do que juntar evidências empíricas verificáveis e replicáveis em torno de um fenômeno e a partir daí tirar conclusões e inferências lógicas para entender as causas e os efeitos desse fenômeno, permitindo então se fazer previsões.

Junte isso e a excelente e conveniente relação entre ciência e o capitalismo e temos eleita a grande disciplina organizadora e validadora do homem atual, acima da religião, da filosofia, da tradição e das artes. Acima de tudo.

Mas o homem, em casa, se agarra à sua cultura e suas tradições e não solta. Por quê? Qual o motivo de não abandonar suas raízes e ingressar de vez na pós-modernidade?

O motivo é simples: uma tradição também explica o mundo através de evidências empíricas verificáveis e replicáveis em torno de fenômenos, faz entender causa e efeito e permite fazer previsões. Esse é exatamente o caso da tradição iorubá.

Como ocorre nas etnias tradicionais milenares, os iorubás têm uma cosmovisão complexa e completa que explica a origem do mundo, da vida e do homem, as relações entre os seres e entre as coisas e os fenômenos naturais e sociais.

E mais, um ritual feito de acordo com os preceitos iorubás em um determinado lugar e momento terá exatamente os mesmos efeitos, percebidos sensorialmente, de quando feito em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento. Verificabilidade, replicabilidade e empirismo.

Isso por si só já derruba a pretensão ocidental de ter a resposta única e definitiva para o mundo.

Não faz sentido para um homem tradicional abandonar sua tradição e sua cultura em favor de uma outra só porque os agentes e as instituições oficiais disseram, ainda mais quando as vantagens anunciadas, na prática, não são assim tão evidentes.

Fica aberta a dúvida de quantas outras cosmovisões válidas existem e foram suprimidas.

Este ano a Humanidade atinge seus 8 bilhões de habitantes. A Nigéria, berço dos iorubás, é a sexta nação do mundo em população e se projeta para a terceira posição em 2100, enquanto os povos europeus diminuem, em um mundo de 10 bilhões de pessoas onde bem mais da metade não serão sequer descendentes de europeus.

Será mesmo que a visão ocidental da supremacia da ciência sobre qualquer outra disciplina vai perdurar até lá? Será que o povo Iorubá, as demais etnias da África negra e os afrodescendentes das Américas, todos diretamente influenciados por essa cultura milenar, que explica o mundo e satisfaz as consciências, não vão assumir de vez essa rica herança, que os coloca no centro do mundo, em detrimento da visão ocidental que os exclui para a periferia?

Sobre o autor:

Thiago é escritor, músico, compositor e iniciado no culto de Ifá. Na literatura, publicou em 2021 o romance “As Invasões Lúdicas” pela editora Ases da Literatura, uma novelinha que narra o desfile do Chico Pinga nos dias do Carnaval de 1918, última festa que vai se jogar antes de assumir a guarda da filha pequena, numa obra que justifica o lírico e o lúdico como formas autênticas de se pôr no mundo. Em 2022 publica o segundo romance, a fantasia “Tião Cacete e os 16 Odus Sagrados – uma aventura afrotupiniquim“, ficção onde o exu Tião Cacete se acha na missão divina de salvar a humanidade da extinção, coisa que ele mesmo não está bem certo que deve cumprir. 

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