Comercialização de telefones sem o carregador: venda casada ou consumo sustentável?
Rogério Lauria Marçal Tucci. LL.M. pela University
of Chicago Law School, Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP
e sócio do Tucci Advogados Associados. Conselheiro Suplente da AASP
Há pouco mais de dois anos, em 13 de
outubro de 2020, a Apple
anunciou a nova geração de aparelhos celulares (iPhone 12). De forma inédita,
os aparelhos passaram a ser comercializados somente com o telefone, além do
cabo de transferência de dados e energia. O carregador de parede e o fone de
ouvido passaram a ser vendidos de forma isolada[1].
Em potencial, existem ganhos para o meio
ambiente, mas os cabos vendidos com os aparelhos de nova geração somente são
compatíveis com carregadores mais recentes. É uma situação paradoxal, que
também convida a algumas reflexões sobre as acusações de prática de venda casada que a Apple vem sofrendo nos
últimos dois anos.
A ausência do carregador, desde o seu
anúncio, foi recebida com comoção e criticismo, o que motivou no Brasil
diversas medidas para compelir a Apple
a incluí-lo na venda dos telefones.
Poucos meses após a divulgação, na
Câmara dos Deputados, foi apresentado o Projeto de Lei 5.451/2020, para
introduzir o art. 39-A ao Código de Defesa do Consumidor, de forma a incluir um
rol de itens obrigatórios no comércio de telefonia móvel: “Art. 39-A. No comércio de terminal de
telefonia móvel, o fornecedor fica obrigado a incluir bateria, fone de ouvido,
fonte de alimentação e quaisquer cabos e adaptadores necessários à fruição do
dispositivo.”
Já em processo administrativo n.
08012.003482/2021-65 junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública,
iniciado de ofício pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor,
recentemente, em 6 de setembro de 2022, foi estipulada multa no valor de
aproximadamente R$ 12 milhões, além da: “cassação,
junto ao órgão competente, de registro dos smartphones da marca iPhone
introduzidos no mercado a partir do modelo iPhone 12, nos termos do art. 18,
IV, do Decreto n.º 2.181/97, bem como a imediata suspensão, nos termos do art.
18, VI, do Decreto n.º 2.181/97, do fornecimento de todos os smartphones da
marca iPhone, independentemente do modelo ou geração, desacompanhados do
carregador de bateria.”
Na fundamentação da decisão
administrativa[2], a prática foi enquadrada em quatro dispositivos
distintos do Decreto n. 2.181/97 : “venda
casada” – art. 12, I; “venda
de produto incompleto ou despido de funcionalidade essencial” –
art. 12, IX, d; “recusa da
venda de produto completo mediante discriminação contra o consumidor”
– art. 13, XIII e “transferência
de responsabilidades a terceiros” – art. 22, III.
No mês seguinte, em 13 de outubro de
2022, foi proferida sentença em ação civil pública n. 1078527-71.2022.8.26.0100
aforada pela Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes
– ABMCC perante a 18ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP,
para também reconhecer a hipótese de venda casada e julgar procedente o pedido
de indenização por danos sociais fixados em R$ 100 milhões, além das obrigações
de entregar um carregador para cada consumidor que deixou de recebe-lo e passar
a vender novos aparelhos sempre em conjunto com seus respectivos carregadores.
A Apple,
por sua vez, veio a público, em mais de uma ocasião, esclarecer que recorrerá
das respectivas decisões, além de declarar que a ausência do carregador não
implica prejuízos aos consumidores, pois há muitos outros já em circulação
decorrente das vendas dos modelos anteriores, além de a prática acarretar
sensíveis ganhos ao meio ambiente.
No site
da Apple, há um
esclarecimento sobre a diminuição da extração de mais de 550 mil toneladas de
minério de zinco, cobre e estanho decorrente da prática adotada, além do fato
de que, com as caixas mais leves e menores, são transportados 70% mais caixas
por palete, o que contribui para a redução de emissões. É, então, declarado que
estas duas externalidades positivas poupariam “mais de 2 milhões de toneladas de carbono, o equivalente a
500 mil carros a menos em circulação por um ano inteiro”[3].
Nesta linha, também há precedente em que
foi julgado improcedente o pedido indenizatório e afastada a prática de venda
casada, sob a justificativa de que o carregador não seria essencial para o
funcionamento do aparelho, pois podem ser utilizados carregadores da Apple mais antigos ou de
outros fabricantes, além do carregamento por indução, possível desde o iPhone 8[4]
- sentença de 31 de agosto de 2022, na ação civil pública n.
5067072-35.2022.8.24.0023 ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa
Catarina perante a 1ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis/SC.
Em relação ao meio ambiente, são
verdadeiramente importantes os argumentos pelo consumo sustentável e pela
redução do impacto ambiental. Tais objetivos sempre devem ser perseguidos, se
possível sua compatibilização, a preços competitivos, com a satisfação das
necessidades humanas e da melhora na qualidade de vida, princípio basilar da
Política Nacional de Resíduos Sólidos, previsto no art. 6º, V, da Lei 12.305/2010.
Sucede que na análise das decisões
contrárias à Apple,
a recente mudança dos conectores dos cabos foi uma ocorrência significativa. Há
poucos anos, os aparelhos são comercializados com cabos de entrada USB-C
(conector menor do que a USB), ou seja, há vários carregadores em circulação
que não são compatíveis com os cabos das últimas gerações do aparelho (embora
os cabos mais antigos ainda possam ser utilizados com os aparelhos mais novos,
mas não com a mesma eficiência).
Ainda, especula-se no mercado que os
atuais cabos estão em vias de ser substituídos. Ao invés de um conector USB-C
em uma ponta e o conector padrão da Apple
na outra (o chamado Lightning
– usado desde o iPhone 5), os cabos passarão a conter o conector USB-C em ambas
as pontas. Inclusive, em 4 de outubro de 2022, o Parlamento Europeu aprovou Lei
impondo, até 2024, o uso de cabos com entradas USB-C nas duas pontas para todos
os aparelhos eletrônicos comercializados na Europa[5].
Se esta mudança ocorrer também em outros países, naturalmente, inumeráveis
cabos com a entrada Lightning
se tornarão obsoletos.
Assim, de um lado, é realmente plausível
que a comercialização de aparelhos sem os carregadores atenda a uma agenda de
consumo sustentável; de outro, há recentes exemplos em que alterações nos
produtos implicaram a obsolescência repentina de acessórios não tão antigos. As
práticas parecem ser, portanto, absolutamente contraditórias.
Todo esse problema, a nosso ver, deve
ser levado em conta para dirimir se a ausência do carregador na venda dos
telefones acarreta práticas ilícitas como venda
casada, se o carregador for compreendido com uma peça acessória ou venda de produto incompleto,
se for vislumbrado como um componente.
Caso dispositivos eletrônicos, como o
carregador, restarem compatíveis com as novas gerações do aparelho por período
considerável, parece ser aceitável e até desejável que a comercialização seja
realizada sem o carregador, em prol da redução de emissões e do consumo
sustentável. Se, no entanto, a evolução tecnológica impuser contínuas
alterações de atributos a provocar obsolescência abrupta de certas peças, não
parece haver melhor solução do que a venda de todo o conjunto. Do contrário, os
usuários serão obrigados, mais cedo ou mais tarde, a adquirir a peça acessória
de forma isolada, o que caracteriza venda
casada, ou serão forçados a se contentar com a subutilização do
aparelho pelo uso de acessórios desatualizados, o que configura venda de produto incompleto.
No fim, é o equilíbrio entre evolução tecnológica
e consumo sustentável que ditará como serão as leis, a regulação e as decisões
judiciais do futuro.
Rogério Lauria Marçal Tucci. LL.M. pela University of Chicago Law
School, Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e sócio do Tucci
Advogados Associados. Conselheiro Suplente da AASP.
[1]
V. notícia do G1 veiculada na mídia em 13.10.2020: Apple anuncia iPhone 12 em quatro modelos; pela primeira
vez, carregador e fone de ouvido não serão inclusos – acesso em
17 de outubro de 2022.
[2]
V. despacho
n. 2.343/2022 de 6.9.2022 – acesso em 17 de outubro de 2022.
[3]
“Menos carregadores, menor
impacto ambiental. Não incluir os adaptadores de energia nas embalagens do
iPhone 12 foi uma mudança ousada para a Apple, mas necessária para o planeta.
Por serem compostos de grandes quantidades de materiais específicos, sem eles
evitamos a extração de mais de 550 mil toneladas de minério de zinco, cobre e
estanho. Com embalagens menores e mais leves, passamos a transportar até 70%
mais caixas de iPhone por palete, o que contribui enormemente na redução de
emissões. Assim, poupamos a natureza de mais de 2 milhões de toneladas de
carbono, o equivalente a 500 mil carros a menos em circulação por um ano inteiro.”
– disponível em https://www.apple.com/br/environment/
- acesso em 18 de outubro de 2022.
[4]
Segundo consta no próprio site da Apple:
https://support.apple.com/pt-br/HT208078
- acesso em 20 de outubro de 2022.
[5] Cf. notícia da Reuters de 4.10.2022: Apple forced to change charger in Europe as EU approves overhaul – acesso em 20 de outubro de 2022.
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