O papel das escolas no desenvolvimento de habilidades significativas para a sociedade contemporânea
Graziela Miê Peres Lopes
Estima-se que 33% da população
brasileira tenha entre zero e 19 anos de idade. Se hoje em dia vivemos em meio
a um bombardeio digital de informações, que impactam nossa produtividade e foco
e exigem de nós priorização, organização, pensamento crítico e autogerenciamento,
imagine como será no futuro próximo, quando essas crianças da geração Alpha
(nascidos a partir de 2010) e esses adolescentes da geração Z (nascidos entre
1996 e 2010) chegarem ao mercado de trabalho?
São 69,8 milhões de crianças e adolescentes
crescendo em pleno Mundo BANI, conceito criado em 2018 pelo antropólogo
futurista Jamais Cascio para sintetizar a dinâmica do mundo atual. A sigla em
inglês traz as iniciais das palavras Brittle,
Anxious, Nonlinear e Incomprehensible, que em português significam
frágil, ansioso, não linear e incompreensível. É uma realidade
imprevisível, que coloca a saúde mental no paredão o tempo todo. A vida
atualmente parece um stories do Instagram, que a cada 24 horas muda o que está
em destaque, tem a velocidade dos vídeos do Tik Tok e, num piscar de olhos,
pode nos transformar em avatares na realidade virtual do Metaverso.
Esse cenário intenso e em constante
movimento tem causado uma verdadeira reviravolta na forma de aprender de
crianças e adolescentes. As escolas não podem mais se limitar ao conhecimento
estático dos livros e aos ensinamentos compartilhados por professores em sala
de aula. É necessário incorporar as infinitas possibilidades de interagir com o
conhecimento e, ao mesmo tempo, instrumentalizar os jovens para que sejam
capazes de utilizar as tecnologias emergentes com responsabilidade e
consciência, utilizando-as para atuar na sociedade de forma significativa. Além
disso, para gerar impactos positivos no mundo contemporâneo, não basta ter contato
com um grande volume de informações, é necessário possuir uma série de
habilidades bem desenvolvidas, como por exemplo fazer uma boa gestão do tempo,
ser capaz de se autorregular e demonstrar resiliência e criatividade diante de
situações não previstas. É uma verdadeira desconstrução de paradigmas e mudança
de mindset, mas é
extremamente necessária.
Com isso, o grande desafio do sistema
educacional é oferecer uma rotina escolar dinâmica, utilizando metodologias que
promovam o engajamento dos estudantes em situações diversas e permitam
aprendizagem contextualizada. Essa atualização é essencial para proporcionar
oportunidades reais de aprendizado e desenvolvimento das habilidades,
tanto socioemocionais quanto cognitivas, necessárias para lidar com toda essa
realidade.
É bom lembrar também que existe um
choque de gerações entre gestores escolares/ professores e alunos, o que pode
desencadear uma certa resistência em romper padrões de ensino que, em tese,
sempre funcionaram. Isso faz com que a decisão sobre quando é importante - ou
não - trazer o “mundo lá de fora” para dentro da escola e como fazer isso de
uma forma responsável seja complexa. Porém, não se trata de julgar se dar esse
passo é bom ou ruim para o aprendizado. Essa evolução é um caminho sem volta para
as instituições de ensino que querem manter o interesse de seus alunos em
aprender e garantir que eles estejam preparados para encarar os desafios da
atualidade.
Na Lumiar, estimulamos que os estudantes
definam projetos com temas do interesse deles e que possibilitem tanto a
aprendizagem de conteúdos escolares, presentes na BNCC, quanto a prática de
habilidades adequadas ao nível de desenvolvimento de cada um. Tivemos no ano
passado, por exemplo, o projeto “A cisterna do Infantil 3”, que surgiu do
interesse de estudantes de 4 e 5 anos em construir “uma máquina” para salvar a
natureza. A partir disso, junto com os educadores, pesquisaram quais problemas
da natureza poderiam ajudar a resolver. Estudaram diversos conceitos de
ciências, ecologia e meio ambiente, em especial, de onde vem o fluxo de água
urbano e como a água da chuva pode ser reaproveitada. Com isso, decidiram que
iriam construir uma cisterna para coletar a água da chuva e contribuir com a
redução do consumo de água tratada. Com o suporte técnico do especialista em
manutenção da escola e mediação da professora tutora aprenderam habilidades
importantes como: planejar, medir, utilizar ferramentas, manter o foco,
gerenciar recursos, pesquisar, expressar ideias e colaborar, além de
desenvolverem responsabilidade social e discutirem conceitos de
sustentabilidade. Após finalizarem sua “preciosa máquina”, agendaram uma
reunião com a gestão da escola com o objetivo de disponibilizá-la para a
utilização de todos. Neste encontro, explicaram que a cisterna seria muito útil
para lavar os pátios e regar as plantas, economizando a água que vem da
Sabesp.
Não são só os estudantes mais novos que
trabalham com projetos na Lumiar. Para nós, a gestão participativa do
aprendizado e as práticas de metodologias ativas são importantes para qualquer
idade. Os adolescentes do Ensino Médio da unidade Pinheiros (SP), por exemplo,
realizaram um projeto bem interessante de culinária. Durante a etapa inicial de
apurar informações, descobriram um curso on-line gratuito, em inglês, oferecido
pela Universidade Harvard, que associava conceitos de física e química com a
gastronomia. Com o suporte de um profissional especializado, criaram receitas
novas com base em um referencial teórico, trabalhando conteúdos específicos da
área de Ciências, conhecimentos em inglês e ainda exercendo a criatividade.
Esse trabalho, com foco no
desenvolvimento de habilidades, irá agregar muito valor à jornada desses
estudantes quando ingressarem no mundo do trabalho. Estamos falando de aprender
a planejar um projeto, realizar boas escolhas, pensar com responsabilidade
social, respeitar a opinião dos colegas, reconhecer a importância de ter
objetivos claros, fazer a gestão dos recursos, relacionar conhecimentos, ter um
olhar multidisciplinar, aprender sobre ética e assim por diante. Essas
habilidades farão com que estejam muito mais preparados para, num futuro
próximo, atuar na sociedade com autonomia, de forma autoral e consciente.
Tem um
estudo recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), uma organização econômica intergovernamental com a participação de 38
países, que faz uma avaliação comparativa internacional de habilidades sociais
e emocionais de crianças e adolescentes que mostra que inovar a educação é mais
do que necessário. O levantamento aponta que estudantes de 15 anos apresentam
níveis de curiosidade e criatividade menores do que os de 10 anos, sugerindo
uma perda da criatividade quando crianças entram na adolescência. Embora os
fatores de desenvolvimento de cada país sejam diferentes, o estudo indica que a
causa principal é o modelo obsoleto das escolas, que mata a curiosidade e a
criatividade à medida que os alunos crescem.
Atividades que ultrapassam os limites
físicos da escola, que ampliam o repertório curricular a partir do que acontece
diariamente no mundo e que são construídas com a participação também dos
estudantes proporcionam oportunidades para que eles desenvolvam competências
essenciais para a superação dos desafios hoje presentes em nossa sociedade. Há
quantos anos estamos repensando os modelos de liderança nas empresas e
desconstruindo modelos rígidos e autoritários, descobrindo que modelos de gestão
mais ágeis e horizontais funcionam melhor para o cenário atual? Quantas vezes
ouvimos que as pessoas são contratadas pelas habilidades técnicas (hard skills)
e demitidas pelas comportamentais (soft skills)? Já passou da hora de
compreendermos que os tempos são outros e que é necessário oferecermos às
nossas crianças e jovens escolas que oportunizem seu desenvolvimento integral,
através da aprendizagem significativa, contextualizada, dinâmica e prazerosa.
O caminho para desenvolver as áreas do
pensar, pesquisar, criar, sentir, expressar, conectar, observar, mover e agir,
sem dúvida, não está nas páginas dos livros analógicos. Está no convívio
e na experimentação do conhecimento na prática e na liberdade do pensamento
para que cada um desenvolva suas aptidões conforme seus interesses e suas
necessidades de aprendizagem. É como se diz no popular: devemos ensinar a
pescar, não adianta dar o peixe - até porque temos a certeza de que amanhã o
fluxo do rio será outro e os ensinamentos de hoje se tornarão obsoletos.
* Graziela Miê Peres Lopes é Diretora Geral das Escolas Lumiar. É formada em Ciências Biológicas, bacharel e licenciada, pela USP e em Pedagogia, pela Universidade Metropolitana de Santos. Fez mestrado em História, Filosofia e Didática de Ciências na Universidade Claude Bernard, em Lyon, na França. Dedica-se à Educação, encontrando nessa área a motivação necessária para trabalhar com entusiasmo e alegria, alinhada com seus propósitos. Acredita em modelos pedagógicos que favoreçam a construção da autonomia para que as pessoas possam atuar no mundo de forma mais autoral, criativa e responsável, descobrindo seus talentos e validando seus interesses.
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