Pacote do governo para o setor automotivo é bomba-relógio de inflação
Samuel Hanan*
O governo brasileiro
acaba de anunciar a implantação de um novo programa de incentivos fiscais para
o setor automotivo, com o objetivo de reduzir os estoques, barateando os preços
para facilitar o acesso desse bem à população e a manutenção dos empregos
gerados pelas empresas. A redução do preço se dará por meio de incentivos e
pequena contribuição das diminuições das margens de lucro das empresas, a serem
compensadas pelo aumento da demanda. O programa atingirá R$ 1,50 bilhão e será
dividido entre automóveis (R$ 0,50 bilhão), ônibus (R$ 0,30 bilhão) e caminhões
(R$ 0,70 bilhão).
É reconhecida a
importância do setor automotivo para a economia nacional. Em 2022, o setor faturou
US$ 39 bilhões, participando com 5,26% do Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro e com 22% do PIB industrial que, por sua vez, tem participação de
23,9% do PIB Brasil. Entretanto, o programa recém-anunciado carrega em si uma
série de vícios, quer pelo diminuto valor e curto período de vigência, quer
pela fonte dos recursos que, segundo entrevista do ministro da Economia,
Fernando Haddad (CNN -5/06/2023), não provocará aumento do déficit público,
pois virá do aumento do preço do óleo diesel (entre setembro de 2023 e janeiro
de 2024).
Pelos cálculos do
governo, no último quadrimestre deste ano o aumento do diesel produzirá aumento
de arrecadação tributária de R$ 1,50 bilhão e, em 2024, o aumento desse
combustível gerará mais R$ 9 bilhões de receita. Parece lógico, mas se trata,
sem dúvida, de uma lógica perversa, pois o aumento do preço do diesel
sabidamente afetará o custo do transporte urbano (ônibus) e dos fretes de tudo
o que é produzido no país (alimentos, remédios, produtos de primeira
necessidade etc), com influência direta também sobre as exportações, no cálculo
da inflação e da taxa de juros. Uma bomba-relógio com data certa para ser
detonada. O carro fica mais barato hoje; o feijão fica mais caro amanhã.
Há cheiro de demagogia
no ar. A solução encontrada pela área econômica do governo para alavancar um
setor produtivo comprova a falta de sensibilidade política e confirma que, para
muitos dos maus governantes, o povo não é
prioridade.
Coincidentemente, ao
mesmo tempo do anúncio governamental o portal de notícias Poder 360, em matéria
publicada dia 5 de junho, trazia as primeiras informações da abertura da caixa
preta dos gastos tributários da União que em 2024, segundo a Unafisco, deverão
alcançar a astronômica cifra de R$ 568 bilhões, o correspondente a 5,86% do
PIB.
A reportagem enumera os
cinco maiores beneficiários desses gastos tributários: R$ 29,5 bilhões para a
Petrobras (tão criticada por sua política de preços); R$ 20 bilhões para a
Vale; R$ 5,2 bilhões para a General Eletric/CELMA; R$ 4,6 bilhões para a
Fiat/Chrysler; e R$ 3,8 bilhões para a Latam.
Veja-se que, sozinha, a
Petrobras, empresa de capital aberto, altamente lucrativa, cujo acionista
majoritário é o governo brasileiro é beneficiada anualmente com valor superior
à renúncia fiscal (de R$ 27 a R$ 28 bilhões) destinada à Zona Franca de Manaus,
que é constantemente atacada na mídia, a despeito de ter esse direito
assegurado pela Constituição Federal de 1988 e de cumprir papel essencial para
o desenvolvimento da região amazônica, além de ser a principal âncora ambiental
do estado e do país, respondendo pela maior renúncia econômica para manter a
floresta em pé.
A Constituição Federal
é clara ao autorizar renúncia fiscal apenas para a correção das desigualdades
regionais e sociais (artigos 3º, 43, 151 e 155, e parágrafos 6º e 7º do artigo
165), mas a farra dos gastos tributários que garantem há décadas incentivos
para as regiões mais desenvolvidas do país contraria o mandamento
constitucional, sem questionamentos.
Não é, no entanto, o único
contrassenso. O mesmo governo que ataca o Banco Central – a despeito da
autonomia do órgão - por sua resistência em baixar a taxa Selic, promove o
aumento do preço do diesel para compensar a redução no preço dos automóveis.
Ignora solenemente que essa medida terá o efeito de sobrecarga da inflação,
caminhando, assim, na contramão para a redução dos juros tão reclamada pelo
governo e podendo influenciar no sentido contrário ao desejado.
É surpreendente que se
ignore o óbvio: acelerar a redução da inflação – uma necessidade para o país –
por meio da diminuição do déficit público permitiria efeitos mais positivos não
limitados apenas ao setor automotivo, mas para a toda a economia, com a redução
dos juros para empréstimos ao setor público (SELIC) e setor privado. E isso
poderia ser feito sem mágica ou medidas meramente demagógicas: simplesmente com
a drástica redução das renúncias fiscais reiteradamente concedidas de forma
ilegítima e que não se prestam ao papel econômico e social que lhes é reservada
pela Constituição Federal.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
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