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Amor silencioso


Uma música antiga de Eduardo Dussek clamava: "Troque seu cachorro por uma criança pobre". Seja mais humano. Seja menos canino, dizia a letra. Eduardo Dussek fez algum sucesso com suas músicas recheadas de humor absurdo, mas isso durou poucos anos e depois despontou para o anonimato. Virou um verbete da Wikipedia. Mas esse não é o assunto dessa coluna. O assunto é a ironia e um certo preconceito gerado pela música de 1982, em parceria com Léo Jaime.

 

A crítica, lamento dizer, válida, era para as pessoas que colocam seu amor narcisista em cima de cachorros e pets, em vez de ter empatia com o sofrimento humano e as crianças pedindo esmola nos semáforos. Dá um certo engulho ver as fotos em redes sociais de pets comemorando (?) seu aniversário em hotéis e buffets caríssimos. Mas amar um pet não é privilégio de madames e socialites.

No meu finado Blog eu escrevi uma crônica sobre uma mulher em situação de rua, também conhecida como Sem Teto, que teve uma longa discussão de relacionamento com sua cachorrinha, quando descia a Av Brigadeiro Luís Antônio em uma manhã fria de outono. A mulher apontava na cachorrinha alguma característica a ser melhorada. A cachorrinha continuava andando ao lado da mulher sem dar bola para o falatório, e sem pensar em abandonar a moça, nem em retrucar seus argumentos. Nesses tempos de frio, alguns moradores de rua se recusam a ir dormir em abrigos da Prefeitura, porque não aceitam seus cachorrinhos no abrigo. Preferem arriscar a própria vida a deixar a sua família canina para trás.

Como se pode ver, amar um cachorro é algo completamente democrático, com ricos e pobres manifestando esse amor à sua maneira. O verso correto seria: para ser mais humano, seja mais canino.

Um popular filósofo pop torce também seu nariz para as pessoas que chamam seus pets de filhos. Aponta, com suas caretas e esgares de intelectual ungido, que as pessoas trocam suas crianças por cachorros, pois são mais baratos, duram menos, e dão menos trabalho. Eu acrescentaria que cachorro só entra em redes sociais por conta de seus tutores, e não dão a mínima para likes e cliques. Isso também é uma grande vantagem sobre os filhotes humanos.

Segundo o filósofo pop, amar os pets seria uma coisa superficial e narcísica nesse tempo de amores de plástico que vivemos. Os cachorros possuem uma capacidade de ressonância afetiva que foi sendo selecionada nos vários milênios em que passaram a ser o melhor amigo do homem. Eles possuem uma capacidade de Imprinting, isso é, identificam no ser humano um vínculo que o bebê tem com a sua mãe. Os olhos dos cães, ao contrário dos lobos, seus ancestrais, tem uma prega, e um movimento na testa e sobrancelhas que dão ao seu olhar, aquela característica quase humana e fofa que transforma seus humanos em uma espécie de escravo deles.

Quando estão próximos de seus humanos queridos, eles reduzem seu batimento cardíaco e entram numa espécie de ressonância afetiva, sincronizando seus ritmos a quem está perto. Isso dá aquela sensação de paz quando ficamos bastante tempo fazendo cafuné, ou trabalhamos horas no computador com o cachorro deitado em nossos pés. Essa ressonância afetiva, leal e incondicional, cria esse vínculo profundo com nossos pets. Não há necessidade de se escolher entre ter um cachorro ou uma criança. Como diria o poeta, qualquer maneira de amar vale a pena. E como vale.

Agora nesse final de mês, nossa cachorra primogênita, Jackie Tequila, nos deixou, em decorrência de complicações de uma cirurgia de um tumor na base de sua língua que, tentamos, desesperadamente, operar. A cirurgia teve uma complicação hemorrágica que determinou a perda dessa boxer de nove anos, forte, corajosa e absolutamente confiante na vida e no amor que acreditava ser um direito natural, pois foi amada, beijada e acarinhada do primeiro ao último dia de sua vida.

Jackie tinha essa capacidade de estabelecer uma ressonância afetiva com todos os seus queridos (tinha muita implicância com lixeiros e prestadores de serviços que não conhecesse). As pessoas falam sobre essa ressonância quando sabem do ocorrido. É como se ela estabelecesse uma frequência para cada pessoa. Um amigo do meu filho que não aparecia aqui há vários anos foi recebido com uma festa por ela, do tipo, e aí cara, por onde você andou?Ao contrário do filósofo pop, eu diria que amar um pet é pagar o maior preço do amor, que é a perda. Escolher abrir espaço para essa experiência que, se tudo der certo, vai terminar com uma perda. Sempre haverá um boçal para dizer: é só um bicho! Compra outro. Estamos numa época de "coisificação do Outro". Os bichos sofrem por virar objetos de consumo, mas quem realmente estabelece essa conexão, essa ressonância, sabe que a experiência com Jackie não pode ser clonada e não pode ser replicada com nenhum outro pet. Nem precisa.

Amar é um ato de coragem e qualquer maneira de amar vale a pena, mesmo com a perda. (Termino esse texto cantarolando a música do Skank que deu o nome de minha doguinha: "Seu nome é Jackie, Jackie ô, Tequiilaa..."

 

*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação younguiano e autor do livro Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa

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