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O dilema do pensamento positivo

Marco Antonio Spinelli*

 

Um paciente querido teve um diagnóstico avassalador de um Câncer no Intestino, com metástases no Fígado. Foi fazer cirurgias nos Estados Unidos para remoção de tumores e, na época, a implantação de uma bomba de quimioterapia diretamente nos tumores do Fígado. No meio da cirurgia deu a louca no cirurgião, ele removeu mais da metade do Fígado do paciente, que se recuperou muito bem. Voltou para o Brasil para mais quimioterapia, agressiva como sua doença. Veio passar em consulta por sintomas de irritabilidade, fadiga e cansaços intensos, além de dor em feridas e aftas na boca. Ele contou as aftas: eram vinte e três. Quando se agoniava com a dor e desconforto, era censurado pelas pessoas pela sua falta de positividade. “Pensamento positivo”! Diziam, sem nenhuma afta na boca. Outra coisa que o irritava eram as frases “Vai dar tudo certo” e, pior ainda, “Já deu certo”. Ele enfrentou a sua doença como um leão ferido lutando por sua vida, aceitava todo tipo de tratamento e procedimento. Por coragem ou por desespero, enfrentou cada passo de uma situação muito grave sem titubear. E precisava ouvir, de quem nem imaginava o que estava passando, que precisava de “Pensamento Positivo”.

Aliás, já faz algum tempo que o tal do Pensamento Positivo vem sendo questionado pelos estudos. A tal da frase “Já deu certo”, por exemplo. Os estudos mostram que mais atrapalha do que ajuda. Pensamentos do tipo: sou o homem mais bem sucedido do mundo, tenho tudo o que quero, sou um imã de dinheiro, que você pode ver nas Redes Sociais e no Youtube, geram dois tipos de problemas: seu Cérebro não é bobo. Não adianta olhar no espelho e dizer: “me sinto muito bem”, quando na verdade você está se sentindo muito mal. Falar “já deu certo” cria um paradoxo que diminui a motivação e capacidade de realização da pessoa. Para o “vai dar tudo certo” é preciso que um monte de coisas acabe dando errado. Dizer que já deu certo, estranhamente, diminui a motivação para a busca de um resultado.

Vivemos numa época em que tudo parece estar à distância de um clique, mas não é isso que ocorre na vida real. Para as coisas darem certo, é preciso muita tentativa e erro, sobretudo, muito erro, o que acaba gerando soluções e aprendizado onde menos se esperava.

Nada é mais difícil na prática clínica que as pessoas que não se dispõe a errar. Temos gerações de jovens fragilizados que não conseguem perceber, criticar e tolerar o processo de tentativa e erro de qualquer aprendizado. Entendem a vida como um vídeo game que perdeu, começa de novo. Morreu, reinicia o jogo. Não há uma perda definitiva. No filme “Escritores da Liberdade” a professora pede para os alunos lerem “O Diário de Anne Frank”. No meio do livro, uma aluna pergunta quando que os aliados vão chegar e metralhar os alemães. A professora explica delicadamente que o livro é baseado na vida real, não é um filme do Tarantino que alguém vai incinerar os nazistas com um lança-chamas. No outro dia, a menina entra na classe chorando e xingando: por que a professora não contou que a menina morria no final? A cena é muito importante, porque a vídeo gamificação do mundo gera essa intolerância à realidade. Anne Frank vai pegar uma metralhadora e vai se livrar de seus perseguidores. Tudo vai dar certo. Não. Muitas vezes não dá certo, e a mocinha morre no final.

Essa positividade boçal deixa as pessoas constantemente apartadas da instância do Real. Freud falou que um dos objetivos da Análise era colocar  as pessoas em contato com a  Realidade. Um século depois, as pessoas se colocam diante da realidade como algo que pode ser moldado pela própria vontade. Os pais dizem que seus filhos são especiais e geniais, mesmo quando não fizeram nada que pareça genial ou especial. Lula fala a Maduro que a percepção que seu país vive uma ditadura sangrenta é apenas uma falha de construir uma narrativa diferente. Os milhões de imigrantes que fogem esfomeados de sua ditadura são um problema de narrativa. A realidade, em tempos digitais, é uma questão de narrativa.

Esse é o dilema do futuro. Para a construção de um Futuro, é importante o aprendizado, os erros, as decepções, os fracassos, a angústia e, por vezes, o desespero. E recomeçar, incontáveis vezes. O “vai dar certo” pode ser facilmente trocado pelo: “vamos fazer dar certo, de um jeito ou de outro”. Para isso, vamos fazer por onde. A atitude positiva, a estimativa do trabalho necessário para chegar lá e o trabalho constante valem mais do que um caminhão de pensamentos positivos.

 

*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação younguiano e autor do livro Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa

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