SP: absorventes descartáveis passam a ser fornecidos às alunas da rede municipal de ensino
Uma lei aprovada pelo governo de São Paulo garante a distribuição de absorventes descartáveis às alunas da rede municipal do estado. O Projeto de Lei (PL) 388 de 2021, garante também o fornecimento de cestas de higiene contendo lenço umedecido, desodorante sem perfume, sabonete, escova de dentes, creme dental e fio dental.
A proposta é de autoria do poder executivo municipal com o intuito de evitar a evasão escolar. “Pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) indica que as alunas do ensino fundamental faltam às aulas no período menstrual no Brasil. Portanto, o projeto além de garantir que todas elas sejam assistidas no seu cuidado pessoal, possibilita que as estudantes não tenham prejuízos à vida escolar e à aprendizagem”, diz o texto da lei.
A aprovação do projeto teve 54 votos favoráveis e uma abstenção pela Câmara Municipal de São Paulo. A vereadora Luana Alves (PSOL/SP), favorável ao projeto, destaca que a distribuição de absorventes tem a capacidade de reduzir a evasão escolar, mas que não soluciona a pobreza menstrual. “A gente sabe que a desigualdade de gênero é complexa e envolve não só ter o absorvente, envolve toda a questão que se tem em torno do que é a menstruação, o tabu de se falar sobre isso envolve muitas coisas, mas sem dúvidas, esse projeto ajuda muito.”
Ainda de acordo com a vereadora, existem outras políticas públicas que são importantes a respeito do tema. “No momento de crise que estamos vivendo, as pessoas que menstruam, mulheres cis e homens trans terem direito ao absorvente é fundamental. Isso passa não apenas pela política de educação, passa por distribuição em UBS, assim como se tem fraldas, camisinhas, passa por ter na cesta básica também, que para nós é fundamental. Então, por exemplo, São Paulo tem o programa Cidade Solidária, que são doações de cestas básicas e seria possível incluir absorvente para pessoas que menstruam”, destaca Luana Alves
Pobreza menstrual
O relatório ‘Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos’ do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), aponta que no Brasil mais de 4 milhões de meninas não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas e cerca de 713 mil vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio, o que caracteriza a pobreza menstrual.
A oficial de programas do UNICEF no Brasil, Rayanne França, explica que a pobreza menstrual não significa apenas a falta de itens para conter o sangramento. “A pobreza menstrual é a falta de insumos que seriam absorventes, calcinhas menstruais e protetores diários. Mas também é a falta de acesso a estruturas como chuveiros, banheiros adequados, sanitários, acesso a água e sabonete para que essas pessoas possam viver de uma maneira digna o seu período menstrual.”
Outros pontos destacados pelo relatório presentes na realidade de muitas meninas e que caracterizam a pobreza menstrual é a falta de saneamento básico (água encanada e esgotamento sanitário), coleta de lixo, falta de acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais e/ou carência de serviços médicos, insuficiência ou incorreção nas informações sobre a saúde menstrual e autoconhecimento sobre o corpo e os ciclos menstruais.
Outros fatores também relacionados são os tabus e preconceitos sobre a menstruação que resultam na segregação de pessoas que menstruam de diversas áreas da vida social. Questões econômicas como, por exemplo, a tributação sobre os produtos menstruais e a mercantilização dos tabus sobre a menstruação com a finalidade de vender produtos desnecessários e que podem fazer mal à saúde.
Rayanne França explica que o tabu em torno do assunto precisa ser quebrado e mais discutido. “Precisamos falar sobre menstruação dentro das escolas, até para se tornar um ambiente seguro para que as pessoas que menstruam se sintam seguras dentro desse ambiente.”
Com relação a estrutura nas escolas, cerca de 321 mil alunas estudam em unidades de ensino que não possuem banheiro em condições de uso, dentre as quais, 121 mil meninas estão no Nordeste, ou seja, 37,8% do total estudam em escolas sem banheiro. Nas escolas rurais, essa porcentagem é de 6,4%.
Na região Norte o percentual de meninas sem acesso ao banheiro nas escolas chega a quase 8,4%. Nas redes de ensino públicas estaduais são 249 mil estudantes nessa situação, o que representa 77,6%.
A falta de papel higiênico, pia e sabão também foram consideradas no relatório. Quanto a estar totalmente desassistida de itens para a higiene pessoal nas escolas, os estados com os maiores percentuais são Acre (5,74%), Maranhão (4,8%), Roraima (4,13%), Piauí (4%) e Mato Grosso do Sul (3,61%).
Ainda de acordo com o estudo, a chance de uma menina negra não ter acesso ao banheiro é quase três vezes maior que a chance de encontrar uma menina branca nas mesmas condições.
Além das dificuldades encontradas nas escolas, outra situação é a falta de água no domicílio das alunas. Mais de 900 mil meninas (5,84% do total estimado) estão em uma situação em que não têm acesso a água canalizada em pelo menos um cômodo dentro de casa, apenas nos seus terrenos. Em uma condição de vulnerabilidade ainda mais extrema estão as mais de 570 mil meninas (3,7%) que não possuem qualquer acesso a água canalizada, nem no terreno.
Vale salientar ainda que 2,8 milhões de meninas (18%) moram em domicílios cujo abastecimento de água não provém da rede geral, mas de poços, água da chuva armazenada ou de outras fontes. As demais, quase 13 milhões de meninas, estão em casas que dependem da rede geral de abastecimento, sendo que 2,3 milhões delas não recebem água diariamente, o que dificulta a correta higienização durante o período menstrual.
Improvisos durante o período menstrual
O UNICEF e o UNFPA apontam que uma família com maior situação de vulnerabilidade e renda menor tende a gastar menos com itens de higiene menstrual e que, muitas vezes, as meninas e mulheres recorrem a soluções improvisadas para conter o sangramento menstrual com pedaços de pano usados, roupas velhas, jornal, miolo de pão e papelão.
Em outros casos, as meninas e mulheres não têm acesso a um número suficiente de absorventes descartáveis para fazer as trocas necessárias ao longo do dia, conforme indicação de ginecologistas, permanecendo com o mesmo absorvente por muitas horas.
A médica ginecologista do Hospital Anchieta, Daniely Toledo Costa, explica que o uso de objetos não adequados para o período menstrual pode acarretar em graves infecções. “Essas pacientes que usam objetos estranhos como miolo de pão e espiga de milho para conter o sangramento vaginal podem adquirir infecções graves como doença inflamatória pélvica, que são inflamações de difícil controle. Já as pacientes que usam aquele mesmo absorvente durante o dia inteiro estão muito mais predispostas a infecções vaginais como candidíase e vaginose, devido a umidade daquele absorvente em contato com a genitália por muito tempo”, explica Daniely
Realidades distintas
Outro ponto importante sobre a pobreza menstrual destacada pela UNICEF é a vilanização do absorvente descartável que, muitas vezes, traz o discurso de proteção ao meio ambiente sem considerar as necessidades de pessoas que menstruam que vivem em situação de vulnerabilidade, em que não há acesso à água limpa para a higienização adequada dos reutilizáveis, seja um produto de tecido ou mesmo do coletor.
Para Rayanne França, desconsiderar essas peculiaridades pode contribuir para negar o acesso aos direitos menstruais. “Quando a gente fala de equidade é olhar para o diferente a partir das suas diferenças. Hoje fazemos uma discussão muito em volta da sustentabilidade, da necessidade de conseguirmos ter um ambiente mais saudável, com a redução de lixo, mas, ao mesmo tempo, precisamos pensar que para reduzirmos o lixo, muitas vezes teremos uma família que nem sequer tem acesso ao saneamento básico.”
Professora cria banco de absorventes para alunas
Professora na rede municipal de ensino de Camaçari, na Bahia, Edicleia Pereira Dias criou um banco de absorventes para atender as alunas matriculadas na escola em que trabalhava. A iniciativa começou em 2010 quando ela e outros profissionais de educação observaram que as alunas faltavam com frequência um determinado período do mês. Então, em 2014, um gráfico foi montado para observar os motivos, como por exemplo, maior movimentação do comércio ou período sazonal, onde as alunas que trabalhavam na área rural não compareciam às aulas.
Após as observações a equipe chegou à conclusão de que a falta das alunas ocorria no período menstrual e montaram kits de higiene íntima para doar com absorvente, sabonete, desodorante, creme de cabelo, perfume, batom, máscara de cílios, sombra, base, escova de dente e creme dental. Mas a equipe se deparou com outro obstáculo: como doar esses kits sem constranger as alunas?
“Falar de menstruação é constrangedor para quem está vivendo o problema, sobretudo, em situação de vulnerabilidade. Então fizemos os kits e eu chamava as alunas na minha sala, porque sempre foi um local visitado pelos adolescentes de maneira muito natural. Convidava o grupo, que eram pessoas com o maior percentual de faltas, e dizia assim: olha, tenho um presente para te entregar, os professores pediram para presentear uma aluna de destaque e gostaria de dar a você, você aceita? Elas aceitavam”, explicou a professora Edicleia.
Durante as entregas, quando as alunas percebiam que havia absorvente descartável, diziam à professora que o item chegou em boa hora. “Percebemos que, de fato, se tratava desse fenômeno [menstruação] e que elas não tinham condições de manter a higiene íntima no período menstrual por conta da falta de recursos.”
A partir dessas entregas individuais, Edicleia pedia para as alunas indicarem outras colegas que também precisavam do item e assim o projeto foi se espalhando pela escola e a evasão escolar diminuindo. “Todos os meses, durante vários anos, tanto os professores quanto os funcionários fizeram doações dos absorventes para compor o banco. Tinha, por exemplo, um porteiro que no início do mês era o primeiro a doar caixas de absorventes, creme de cabelo, comprava os itens em atacado para levar para as meninas e ele também observava no horário de entrada como as alunas estavam, se frequentavam as aulas todos os dias e, se houvesse algum problema, ele me falava”, disse a professora.
O projeto de Edicleia ganhou notoriedade quando, certa vez, cedeu o espaço da escola para um projeto de dança e uma aluna de 10 anos, que estava menstruada, se recusou a fazer a atividade pois, se dançasse, poderia sujar a roupa com sangue. As professoras descobriram então que a criança estava utilizando um pedaço de papelão para conter a menstruação. Triste com a situação, a professora de dança doou absorventes para a aluna e Edicléia apontou que a situação era comum na cidade. Apresentou o Banco de Absorventes e a professora de dança divulgou a iniciativa nas redes sociais, que passou a ganhar visibilidade em todo o país.
Após a popularidade do projeto, a professora passou a receber doações de outras pessoas e instituições. A causa é abraçada por todos da escola e a menstruação é um assunto falado abertamente. De acordo com Edicleia, até os meninos da escola entendem a situação e ajudam as meninas, avisando-as caso a roupa esteja suja de sangue ou emprestando um casaco para que possam esconder a mancha na roupa.
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Entretanto, a responsável pelo banco de absorventes afirma que a pobreza menstrual é apenas a ponta do iceberg. “Uma menina que chega nas condições de não ter dinheiro para comprar um absorvente carece de todas as coisas que a gente possa imaginar. Eu vejo as pessoas romantizando nas redes sociais, questionando porque elas não usam um paninho, mas essa menina não tem saneamento básico, essa menina não tem água, essa menina não tem sabonete”, pontua Edicleia Dias.
Rayanne França, oficial de programas do UNICEF no Brasil, explica que para garantir o direito à menstruação é necessário incentivar governadores e prefeitos a pensarem em políticas estruturadas. “Hoje já percebemos o avanço de muitos estados e municípios com pequenas aprovações de projetos de lei, como foi o caso de São Paulo e o estado do Amazonas, que também vai avançando nessa estrutura. Mas é necessário pensar que não podemos só entregar um absorvente, é preciso entregar também o direito daquela pessoa ter saneamento básico, ter acesso a água, conseguir garantir informações de como ela pode fazer uma gestão dos seus insumos e do seu lixo. É impossível falarmos apenas do direito à menstruação como uma simples entrega de absorventes.”
O relatório da UNICEF e UNFPA mostra também que mais de 3 milhões (20% do total de meninas brasileiras) moram em casas em que não há coleta de lixo por serviço de limpeza, tendo que levar os resíduos até caçambas, enterrando na propriedade ou despejando em terreno baldio. Destaca-se ainda que queimar o lixo é a solução adotada pelos lares de 1,67 milhões de meninas, cerca de 10,8% do total de adolescentes no Brasil.
Fonte: Brasil 61
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