Modulação de efeitos da inconstitucionalidade das alíquotas de ICMS sobre telecom e energia é despropósito
*por Hugo Barreto Sodré Leal
Com a conclusão do julgamento do mérito
do RE 714.138 (Tema 745), acerca da constitucionalidade das alíquotas agravadas
de ICMS para serviços de telecomunicação e fornecimento de energia elétrica, o
Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “Adotada, pelo legislador
estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços – ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas
sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar
superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e
serviços.”
Embora o STF tenha reconhecido a
inconstitucionalidade das alíquotas majoradas de ICMS, o Min. Dias Toffoli
propôs que os efeitos da decisão fossem modulados com efeitos prospectivos,
inicialmente, para que passasse a valer apenas a partir de 2022 e ressalvadas
as ações que fossem ajuizadas até a véspera da publicação da ata de julgamento
do mérito, o que ocorreu em 29.11.2021.
Posteriormente, o julgamento da
modulação de efeitos foi suspenso em razão do pedido de vista do ministro
Gilmar Mendes, o que deu tempo para que representantes dos 22 Estados e do
Distrito Federal se reunissem com o ministro Dias Toffoli, pleiteando que a
decisão somente passasse a produzir efeitos a partir de 2024, após o
encerramento do Plano Plurianual (“PPA”) atualmente em vigor, que se encerra no
final do exercício de 2023. Com a devolução do processo pelo ministro Gilmar
Mendes, o julgamento da modulação de efeitos foi inserido na sessão virtual de
10.12.2021 até 17.12.2021, estando prevista para se encerrar nesta sexta-feira.
Em razão do pedido dos Estados, o
ministro Dias Tofolli apresentou nova proposta de modulação para que a
declaração de inconstitucionalidade somente comece a produzir efeitos a partir
do exercício financeiro de 2024! Além disso, propôs que apenas “certas ações já
ajuizadas” sejam preservadas da modulação de efeitos, tendo indicado como novo
marco temporal, para esse fim, o dia 5.12.2021, quando foi iniciado o
julgamento de mérito do caso, com o voto proferido pelo então ministro Marco
Aurélio. Infelizmente, até o presente momento, embora o julgamento ainda não
tenha sido concluído, já há maioria para modulação de efeitos conforme nova
proposta do Min. Dias Tofolli.
No entanto, tanto a proposta para que
que a tese firmada somente passe a produzir efeitos a partir de 2024, como o
novo marco temporal adotado para proteção das ações judiciais já ajuizadas para
discussão da matéria, são extremamente criticáveis e representam grave violação
da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança no Poder
Judiciário.
Como regra, a declaração de
inconstitucionalidade projeta seus efeitos não apenas para o futuro, mas
inclusive em relação ao passado (eficácia ex tunc), o que significa que todos os
efeitos produzidos pela lei declarada inconstitucional são considerados nulos
desde a origem da lei. Desta forma, em matéria tributária, caso determinada lei
que tenha instituído ou majorado tributos seja declarada inconstitucional, o
contribuinte possui, como regra, o direito à devolução (repetição) de todos os
valores que tenham sido cobrados com base na lei inconstitucional. Em relação
ao futuro, com mais razão, a cessação da cobrança do tributo declarado
inconstitucional deveria se operar de maneira imediata e não diferida no tempo
para um marco temporal futuro.
A modulação dos efeitos temporais das
decisões proferidas pelo STF constitui exceção à eficácia retroativa das
declarações de inconstitucionalidade e somente deveria ser utilizada em
situações realmente excepcionais, em razão da existência de outros valores ou
princípios constitucionais relevantes. Em matéria tributária, a
modulação dos efeitos merece extremo cuidado e deveria ser aplicada com mais
parcimônia. O princípio da segurança jurídica somente deveria ser invocado,
como regra, para justificar a modulação dos efeitos da decisão do STF em
benefício dos contribuintes e não em benefício do próprio Fisco que
editou a norma inconstitucional. Isto porque, no âmbito do direito tributário,
a segurança jurídica constitui uma garantia individual do contribuinte contra o
Estado, constituindo uma limitação ao poder de tributar, e não um instrumento
do Estado contra o contribuinte.
O simples interesse arrecadatório não se
confunde com o interesse público, nem constitui razão suficiente para
preservação de cobranças inconstitucionais. Se o simples interesse
arrecadatório fosse bastante para justificar a modulação de efeitos, então,
sempre que houvesse declaração de inconstitucionalidade de alguma norma
tributária que instituiu ou majorou tributos, o STF poderia modular os efeitos
da decisão, vedando a repetição de indébitos ou conferindo-lhe efeitos
meramente prospectivos. O montante envolvido na discussão, além de normalmente
baseado em estimativas exageradas do Poder Público, também não pode servir de
justificativa para modulação. De outro modo, quanto maior fosse o montante do
tributo indevidamente cobrado, maiores seriam as chances de o Estado sair
imune, o que além de absurdo, serviria de forte estímulo para criação de novos
tributos inconstitucionais.
No caso do julgamento das alíquotas majoradas
de ICMS sobre serviços de telecomunicação e fornecimento de energia elétrica,
ainda que se admitisse que estariam presentes as condições excepcionais
necessárias para modulação dos efeitos da tese firmada pelo STF, o que somente
se admite para fins de argumentação, eventual modulação deveria ter o seu
alcance limitado para impedir a repetição de indébitos em relação aos tributos
já recolhidos pelos contribuintes. De forma alguma, justifica-se a atribuição
de efeitos prospectivos à declaração de inconstitucionalidade proferida,
autorizando-se a continuidade da cobrança inconstitucional até 2024! Uma coisa
é restringir o direito dos contribuintes de solicitar a devolução do que já foi
pago indevidamente, outra, bastante mais grave, é continuar sujeitando os
contribuintes ao pagamento de tributos inconstitucionais.
Outro ponto de extrema gravidade e
preocupação é o novo marco temporal proposto pelo ministro Dias Tofolli para
fins de ressalvar as ações judiciais já ajuizadas pelos contribuintes. A análise
dos precedentes do STF deixa claro que, sempre que houve modulação de efeitos,
o STF preservou as ações que já haviam sido ajuizadas até a data da publicação
da ata do julgamento de mérito, deixando fora de seu escudo de proteção apenas
novas ações ajuizadas a partir dessa data. A proposta do estabelecimento de um
“novo marco temporal”, para que sejam ressalvadas apenas as ações ajuizadas até
a data do início do julgamento de mérito, representa grave ruptura do sistema
de precedentes sobre a matéria, comprometendo a segurança jurídica e a
confiança dos contribuintes no Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal
deveria respeitar os seus próprios precedentes.
* Hugo Barreto Sodré Leal é sócio da área tributária do Cescon Barrieu Advogados
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