7 mentiras contadas sobre a Lei Rouanet
Por Nichollas Alem
Volta e meia encontro
pessoas postando algum meme ou crítica sobre a Lei Rouanet em redes sociais. A
discussão pode ter começado pelos mais diferentes motivos, mas é muito comum
que alguém apareça para falar isso ou aquilo dessa norma. De modo intencional
ou não, muitas mentiras são contadas e a desinformação parece ser a regra
quando tratamos desse assunto. Por esse motivo, achei que seria legal
começar o ano com 7 perguntas e respostas sobre a Lei Rouanet a
partir dos absurdos e sandices que leio e escuto por aí. Vamos lá?
- A Lei
Rouanet é uma invenção do PT / da esquerda?
Pelo contrário, a Lei Rouanet está mais próxima do
espectro político da direita. Durante o governo Collor, o
Ministério da Cultura e outras entidades que atuavam na área foram fechados.
Tratou-se de um movimento neoliberal de diminuição da participação do Estado no
campo da cultura. Em contrapartida a esta desestruturação das políticas
vigentes, foi criado o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) pela
Lei n.º 8.313/91, a famosa “Lei Rouanet”.
Um dos instrumentos que
a Rouanet trouxe é um incentivo fiscal para patrocinadores e doadores de
projetos culturais. A proposta é estimular que o mercado participe mais no
financiamento da cultura – diminuindo o protagonismo do Estado. Por esse
motivo, podemos dizer que a Lei n.º 8.313/91 foi idealizada mais em uma
perspectiva de direita (liberal) do que de esquerda.
- A Lei
Rouanet dá dinheiro para artistas?
Errado! A Lei Rouanet
prevê três instrumentos de financiamento: Fundo Nacional da Cultura
(FNC); Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart); e o mecenato.
Normalmente, quando lemos alguma notícia no jornal ou escutamos críticas
sobre a Rouanet, estão tratando especificamente desta última modalidade,
ou seja, o mecenato. E como ele funciona?
Pessoas, empresas e
entidades sem fins lucrativos (como muitos museus, por exemplo) podem apresentar
um projeto cultural na Secretaria Especial de Cultura. Esse órgão vai fazer uma
análise de viabilidade técnica e orçamentária do projeto. Basicamente, o Poder
Público quer saber se a proposta tem coerência, se “para de pé” e se está de
acordo com as finalidades da legislação. Se tudo estiver certinho, a Secretaria
autoriza a captação de recursos no mercado/na sociedade. Assim, o idealizador
do projeto cultural vai procurar patrocinadores e doadores. Os apoiadores
desses projetos culturais aprovados poderão utilizar um inventivo fiscal
proporcional ao valor patrocinado/doado, além de outros benefícios como
exposição da marca, ingressos para eventos, dentre outras, a depender do caso.
O responsável pelo
projeto precisa gastar o dinheiro captado de acordo com o orçamento aprovado
pela Secretaria. A legislação prevê inclusive certos limites para cada rubrica
(cada linha do orçamento), de modo que não é possível pegar todo dinheiro e
gastar com apenas um favorecido/um artista. Portanto, no mecenato da Lei Rouanet, não é o
Estado que dá dinheiro diretamente aos artistas. Do ponto de
vista técnico, chamamos estes recursos de gasto público indireto, justamente
porque são decorrentes de incentivos fiscais.
- A Lei
Rouanet tira recursos da saúde, educação etc.?
Não
exatamente. Como explicamos acima, o mecenato na Lei Rouanet funciona com incentivos
fiscais. O Estado deixa de arrecadar com tributos (no
caso, o Imposto de Renda) para fomentar determinado setor. Nesse sentido,
abre-se mão de uma receita que não necessariamente iria para uma área como
saúde ou educação. Além disso, devemos ressaltar que a cultura sempre recebeu
participações minúsculas do orçamento federal. Para se ter uma ideia, a Receita
Federal estimou que os gastos tributários com a Lei Rouanet (ou seja, o que o
Estado deixaria de arrecadar com o imposto) representavam apenas 0,51% do
total de renúncias fiscais para 2019.
- Bolsonaro
acabou com a Lei Rouanet?
Não. A Lei Rouanet continua vigente. Do
ponto de vista legal, durante a sua gestão foram feitas duas atualizações
importantes: a Instrução Normativa n.º 2/2019 e o
Decreto n.º 10.755/21. Este último será objeto de análise de
constitucionalidade por trazer algumas mudanças questionáveis no programa.
Porém, um ponto importante a ser observado está no histórico captação de
recursos. Mais precisamente, a captação na Rouanet continuou subindo,
inclusive, em níveis mais elevados do que na era do governo petista. Fonte: http://sistemas.cultura.gov.br/, consulta realizada em 04/01/2022.
- O governo
Bolsonaro pode escolher não aprovar projetos de inimigos políticos ou
críticos?
Não pode. Realmente, há relatos
de perseguição ideológica e sucateamento da administração na atual gestão.
Porém, a própria Lei Rouanet prevê o seguinte: “Art. 39. Constitui crime, punível com a
reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto,
qualquer discriminação de natureza política que atente contra a liberdade de
expressão, de atividade intelectual e artística, de consciência ou crença, no
andamento dos projetos a que se refere esta Lei.” Para quem acha
que, realmente, “fulano” ou “beltrano” não deveria receber, basta refletir que
governos mudam. Logo, um instrumento de fomento à cultura não pode estar
sujeito às visões subjetivas da administração pública. Por esse motivo, é muito
importante aprimorar e fortalecer as instâncias democráticas e independentes de
avaliação de projetos dentro do Programa.
- Os artistas
desviam recursos da Lei Rouanet?
Não! A Lei Rouanet é uma das políticas
baseadas em incentivos fiscais mais transparentes. Isso
acontece porque o proponente (o idealizador ou “dono” do projeto) precisa
gastar os recursos de acordo com o orçamento aprovado pela Secretaria. No final
do prazo de execução, ele precisa prestar contas e enviar os comprovantes de
que gastou corretamente os recursos. É claro que existem desvios, como qualquer
outra política ou iniciativa – seja ela pública ou privada -, mas isso é uma
pequena parcela dos milhares de projetos culturais apoiados na Rouanet.
- Os recursos
vão para quem merece?
Essa é uma boa
discussão. A Lei
Rouanet não foi pensada para que os projetos culturais fossem
filtrados/reprovados com base em critérios como “o artista ser famoso” ou “o projeto ter capacidade de se
financiar sozinho“.
Desse modo, qualquer proposta que se enquadre dentro de requisitos legais mais
objetivos de viabilidade técnica e orçamentária (potencialmente) pode ser
aprovada. Caberá ao mercado, na condição de patrocinador/doador, decidir “quem
merece ou não” receber este apoio. Isso realmente gera algumas distorções, por
exemplo, a concentração da captação de recursos em certos segmentos artísticos
e regiões do Brasil como o Sudeste. Aliás, o próprio governo estuda medidas
para tentar enfrentar o assunto. Essa questão envolve uma discussão muito mais
estrutural do Programa. Devemos refletir se o problema está nele ou na ausência
de outros mecanismos que possam balancear essas distorções.
Nichollas Alem é Fundador e Presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes - IDEA. Advogado atuante nas áreas de Direito do Entretenimento e Direito da Inovação Tecnológica na BS&A Advogados. Mestre em Direito Econômico pela USP. Consultor da UNESCO em equipamentos culturais. Membro da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.
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