A confusa e trapalhona decisão da OMS sobre a Síndrome de Burnout
Estevam Vaz Lima*
Uma das dificuldades envolvendo o tema
“Burnout” é que a noção ganhou status de dogma religioso. E, como tal, é
indiscutível – trata-se de uma questão de fé. Entretanto, para aqueles que se
reservam algum espaço para pensar sobre o assunto, há aspectos bastante
interessantes a serem considerados.
A decisão da OMS de passar a nomear
Burnout como “síndrome” é um deles. E a primeira impressão que se tem é que a
confusão envolvendo o Burnout foi instalada dentro da própria Organização
Mundial da Saúde, desde o momento em que decidiram anunciar a mudança na forma
de descrever a síndrome: no dia 26 de junho de 2019 um porta-voz da instituição
veio a público dizendo que Burnout passaria a ser considerado doença na CID 11.
Quatro dias depois, outro porta-voz desfez a informação: “Houve um
mal-entendido. ‘Burnout ’ não foi de fato reconhecido pela OMS como uma
condição médica. Posto isto, a importância do bem-estar no local de trabalho é
bem compreendida pela OMS’, disse Christian Lindmeier, porta-voz da agência de
saúde, ao Medscape Medical News.” Além do portal Medscape, outros órgãos da
mídia também deram a notícia. Numa época em que as pessoas parecem muito mais
propensas a reagir do que pensar e, consequentemente, manter em suas mentes
aquilo que é mais sensacionalista, obviamente se esqueceram do desmentido do
segundo porta voz e o noticiário do início deste ano só fala em Burnout como
“doença”, especificamente “doença ocupacional”.
Mas este é apenas o começo da
trapalhada. É preciso que o leitor entenda alguns aspectos da CID para que
possa compreender o que aconteceu. A CID classifica doenças usando códigos que
se iniciam com letras. A CID 10, por exemplo, classificava doenças até a letra
S. A partir da letra T, codificava eventos variados, que vão de fraturas e
intoxicações a “objeto estranho no ouvido”, “queda da própria altura em
superfície coberta de neve”, “colisão entre bicicleta e veículo de tração
animal”, “permanência prolongada em ambiente agravitacional”, etc.. O “Burnout”
encontrava-se na subcategoria ”Problemas com a organização do seu modo de
vida”, dentro do grande grupo “Fatores que influenciam o estado de saúde ou o contato
com os serviços de saúde” (letra Z). O que as mídias se esquecem de dizer é que
a Síndrome de Burnout vai
continuar nessa mesma categoria dentro da CID 11 – ou seja, como eventos que
não correspondem a doenças (agora codificada sob a letra Q).
Mas este ainda é apenas um pequeno
ingrediente envolvendo a confusão em torno do “Burnout”. A OMS adotou os
critérios do MBI (Maslach Burnout Inventory) para caracterizar a síndrome. O
MBI é um questionário simples e ingênuo que identifica ou “diagnostica” Burnout
em todo e qualquer respondedor, que ganha, no mínimo, o rótulo de portador de
“Burnout leve”. É fortemente identificado com o Burnout. (“Burnout é o
que o MBI mede e o MBI mede o que é Burnout” diz Kristensen, pesquisador
dinamarquês que criou o CBI – Copenhagen Burnout Inventory). Além disso, o MBI
é rigidamente protegido por direitos autorais, seu uso exige pagamento, o que
torna o Burnout, por tabela, a primeira “doença” da história sujeita ao
pagamento de direitos autorais... Junte-se aí o fato de que a “síndrome” é
caracterizada por pelo menos 140 sintomas. Schaufeli, o principal teórico do
Burnout, compilou 132, encontramos mais oito.
Com isso tudo, temos uma boa medida da
trapalhada em que se meteu a OMS: incluiu uma “doença” - que não considera
doença (!!) - que acomete 100% das populações. Está incluindo na CID 11 a
primeira “doença” protegida por direitos autorais e que, com seus 140 sintomas,
corresponderia à mais surpreendente, bizarra e estranha índrome da qual já se
ouviu falar. Como se não bastasse, a OMS recomenda que sejam exluídos
depressão, transtorno de estresse e ansiedade do “diagnóstico”. Ora, as
diversas categorias de depressão e de transtornos de estresse estão justamente
entre os cerca de 30 diagnósticos psiquiátricos que são engolfados e rotulados
como “Burnout” pelo MBI! Durma-se com um barulho destes! Mas os crentes
dormirão tranquilamente: trata-se de uma questão de fé, e pronto!
*Estevam Vaz de Lima é médico pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP); psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação Médica Brasileira e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise/International Psychoanalytical Association.
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