A paz invadindo meu coração
Marco Antonio Spinelli*
Esse título me ocorreu junto com a
música belíssima de Gilberto Gil: "Vim parar na beira do cais/ Onde a
estrada chegou ao fim/ Onde o fim da tarde é lilás/ Onde o sol arrebenta em
mim/ O lamento de tantos ais".
A música descreve o poeta se refugiando
no final de uma tarde de briga, de sofrimento amoroso, do "Só a guerra faz
nosso amor em paz". Pessoas sofrem pela presença e pela ausência de
parceiro e de parceria. Não é incomum que a paz venha acompanhada da tristeza
das batalhas, amorosas ou não.
O fato é que somos sempre compelidos à
guerra. Somos soldados do BOPE invadindo as favelas de nossas dificuldades,
tentando vencer as batalhas que não vencemos: batalhas para perder peso,
batalhas para encontrar o verdadeiro amor, batalhas para encontrar o conforto
econômico e o futuro protegido, batalhas que nos consomem no dia a dia deixando
sempre um gosto de que algo ainda não está bom no final da tarde lilás.
Uma das minhas birras com os livros de
AutoAjuda (os terapeutas costumam torcer o nariz com esses livros que são como
locutores de FM berrando aos nossos ouvidos que devemos ser felizes, magros,
animados, positivos) é justamente essa coisa de jogar sempre para o amanhã o
que poderia ser vivido hoje. Pense positivo e conquiste o carro, o namorado, a
mansão de seus sonhos.
Outro dia estava lendo um jornal e
fiquei emocionado com uma matéria sobre a religião no dia a dia das pessoas; o
repórter colheu um depoimento de uma senhora muito simples que havia se
convertido ao Budismo e descobrira que poderia ser útil e feliz sendo uma boa
empregada doméstica. Desde este insight imenso, ela cultivava uma atitude
alegre e caprichosa em tudo o que fazia, tornando-se uma ótima profissional,
além de realizada.
Muita gente torceria o nariz diante
desse texto dizendo que isso é estimular a alienação e o conformismo, as
pessoas precisam querer crescer, a senhora deveria voltar a escola, ser empreendedora
e virar diarista, montar uma empresa de faxinas, fazer MBA e depois, sim, após
o terceiro infarto do miocárdio, gozar da alegria da meta alcançada.
Esses são nossos valores, ou a ausência
deles, que nos tornam alienados de algumas verdades simples, que costumam ser
as maiores verdades: não temos como antever e muito menos controlar o futuro.
Gastamos muita energia com ele. Devemos ser imprevidentes, viver o limite,
desprezar os planejamentos? Muito pelo contrário. Podemos planejar, cuidar e expandir
as fronteiras de nosso futuro, é uma das vantagens de nosso Neocortex recém
conquistado em nossa jornada evolutiva. Mas a serenidade da senhora, que
transforma cada pequeno ato de limpeza e arrumação com algo transcendente é um
exemplo do estado neurofisiológico que devemos praticar. Todo dia. Um estado
que me lembra a paz, invadindo meu coração.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta younguiano e autor do livro “Stress o Coelho de Alice Tem Sempre Muita Pressa”
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