Interrupções de suprimentos - causas, consequências e como evitá-las
Nos últimos meses acompanhamos o aumento da inflação de custos, causado pela escassez de matérias primas e componentes, consequência da paralisação de linhas de produção durante o período do coronavírus, aliada à retomada do consumo. Apesar desse pico atual, acredito que a inflação será contida em alguns meses, mas saliento a importância do entendimento profundo da interdependência de cadeias de produção integradas, tema importante, que deve ser compreendido por gestores empresariais, para mitigar riscos em suas operações.
Qual custo para uma montadora parar a
linha de produção de um veículo, devido à falta de colunas de direção não
entregues por um fornecedor? Quantos barris por dia uma empresa de petróleo upstream perderia se um
petroleiro terceirizado não descarregasse o FPSO no prazo? Quantos whoppers o
Burger King vende em um dia, e o que aconteceria se o fornecedor de cebola,
devido a condições climáticas, deixasse de entregar em determinada região?
De acordo a Harvard Business Review, o custo diário de
interrupção de uma cadeia de abastecimento varia de USD 310 mil a USD 1,2
milhão para empresas com receitas de USD 7,7 milhões a USD 50 bilhões por ano.
Para otimizar o capital de giro e
melhorar o balanço, as empresas mantêm menos estoques e adotam estratégias just-in-time. Isso aumenta a
pressão sobre os ciclos de produção e, portanto, aumenta a dependência de
fornecedores terceirizados e o impacto associado a interrupções no
fornecimento.
Assessorei, durante 24 meses, uma
montadora que possuía um único fornecedor para cada componente dos carros que
fabricava, de modo que sua vulnerabilidade com relação a tais fornecedores era
tanta, que os mesmos frequentemente solicitavam recursos para tal montadora,
ameaçando interromper a produção, afinal, um carro pode ter todos os
componentes, mas não sai da fábrica se um, apenas um deles, faltar.
Compartilho aqui um pouco do que vivi e
aprendi, mantendo durante esse período as fábricas desta montadora sem nenhuma
interrupção. Ressalto que os conceitos desse texto podem ser aplicados a
empresas de todos os tamanhos e em todos os segmentos, com menor ou maior
profundidade. Seja o Burger King ou o dono da padaria do bairro, ambos estão
expostos à ruptura de suas operações por falhas de fornecedores, e precisam
estar atentos.
Segundo o filósofo americano William
James, “uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco”. Recessões
econômicas combinadas com preocupações geopolíticas resultam no aumento da
instabilidade, especialmente nas cadeias de abastecimento globais, e o
monitoramento da saúde dos fornecedores é imperativo. Empresas precisam ser
capazes de proteger suas vulnerabilidades.
Durante o século 20, a verticalização foi
o modelo operacional de muitas indústrias. Montadoras, por exemplo, produziam
de tudo, desde a fundição, cultivo da borracha, fabricação de peças, montagem e
transporte dos automóveis prontos. Este modelo foi vantajoso devido às
economias de escala na produção em massa e custos mais baratos para comprar
maiores quantidades e variedades de materiais. Fornecedores confiáveis eram
essenciais para a produção em massa, já que grandes investimentos em fábricas,
equipamentos e estoques podiam ficar ociosos por falta de componentes, que
poderiam estar indisponíveis. Portanto, ter a propriedade de toda a operação
(integração vertical) tornou-se fundamental.
No entanto, uma mudança em direção à
desverticalização ocorreu nas últimas décadas, como resultado de fatores, como:
(i) diminuição dos custos de comunicação, (ii) aumento dos sistemas de
controle, (iii) padronização da produção, (iv) implementação de programas de
controle de qualidade, (v) redução de barreiras comerciais e tributação entre
os países, (vi) países com mão de obra qualificada e de baixo custo, (vii)
necessidade de otimização do capital de giro e foco no core business.
Isso permitiu que grandes players passassem a comprar
produtos e serviços terceirizados, criando economias de escala de indústrias inteiras,
ao invés de economias de escala baseadas apenas em uma determinada empresa. O
novo padrão passou a ser empresas horizontais, colaborando estreitamente com
fornecedores (contando com parceiros para executar funções em vez de manter o
controle). De acordo com a Bain
Consulting, mais de 80% de todas as grandes empresas do mundo usam
parceiros externos, muitos desempenhando funções antes vistas como core businesses.
Esse novo modelo traz vulnerabilidades.
As empresas devem determinar a viabilidade e os riscos envolvidos na
terceirização. O panorama e as opções da cadeia de suprimentos (número de
fornecedores, qualidade, tecnologia, logística, entre outros), devem ser
analisados em detalhes antes da decisão.
Um aspecto fundamental é o poder de
barganha dos fornecedores. Se houver poucos fornecedores, e tais fornecedores
tiverem vantagens competitivas e conhecimentos únicos, eles podem exercer um
poder significativo sobre o setor. Se as peças fornecidas forem genéricas e
tiverem alternativas facilmente disponíveis (recursos), o fornecedor terá menor
poder de barganha. Quando os fornecedores têm poder de barganha, podem
pressionar a empresa cliente, cobrando preços mais altos, ajustando a qualidade
ou controlando a disponibilidade e os prazos de entrega, podendo afetar o
ambiente competitivo e influenciar diretamente a lucratividade da empresa
cliente.
Fatores que aumentam o poder de barganha
de um fornecedor: (i) poucas opções de outros fornecedores, (ii) altos custos
para mudar para outro fornecedor, (iii) facilidade do fornecedor se tornar um
concorrente, (iv) conhecimento ou tecnologia específicos, (v) produto altamente
diferenciado, (vi) vários clientes - baixa dependência da empresa cliente,
(vii) nenhum substituto disponível.
Dada a importância dos fornecedores para
a cadeia de valor, é do interesse da empresa-cliente criar e manter boas
relações. Informações críticas sobre o processo precisam ser compartilhadas com
o fornecedor para garantir que não haja atrasos ou custos desnecessários
incorridos. Canais de comunicação abertos com a segurança e confidencialidade
exigidas ajudarão a fortalecer o relacionamento com os fornecedores.
Comunicação clara também permitirá que o estabelecimento de planos de
contingência para circunstâncias excepcionais.
Processos detalhados (com as informações
corretas) podem minimizar o risco associado aos fornecedores. Planos de
emergência devem ser elaborados para evitar interrupções na cadeia de valor. Se
todas as partes conhecerem o plano, elas poderão administrar desastres naturais
e outros eventos caóticos sem maiores problemas.
A produção de automóveis é uma das
cadeias mais complexas, requer milhares de peças e componentes de um grande
número de fornecedores. Tradicionalmente, o poder de barganha dos fornecedores
neste setor tem sido muito baixo, mas o cenário mudou ao longo dos anos. Para
otimizar a estrutura de capital, as montadoras venderam seus ativos não
essenciais, seguindo a tendência de desverticalização. De acordo com MarketRealist, a
contribuição dos fornecedores terceirizados para a cadeia de valor de
automóveis passou de 56% em 1985 para de 82% em 2015.
Nas últimas décadas as montadoras
expandiram nos países emergentes e, para terem uma base de fornecedores
confiável, incentivaram os fornecedores tradicionais europeus e americanos a
instalarem suas próprias fábricas nesses países. Quando e onde não foi
possível, as montadoras desenvolveram sua própria base de fornecedores locais,
com empresas locais (a maioria de propriedade familiar).
As empresas familiares são as que mais
sofrem em períodos de recessão, como o que passamos recentemente, pois carecem
de solidez financeira e experiência para lidar com crises, gestão pouco
profissional e dependência de poucos clientes e produtos. Assim, possuir
alertas preditivos e monitoramento é fundamental para prevenir os riscos de
rupturas desses fornecedores. Interrupções no fornecimento afetam as operações,
especialmente para multinacionais que contam com amplas redes de fornecedores,
e estão constantemente expostas a múltiplos riscos relacionados à cadeia de
suprimentos, que podem prejudicar suas receitas, marcas e reputações.
Os riscos podem ser macroeconômicos,
políticos, ambientais, crises econômicas, instabilidades políticas, guerras,
mudanças na tributação, medidas protecionistas e desastres naturais. Também
podem estar relacionados aos fornecedores: (i) situação financeira deteriorada
- redução nas vendas, fluxo de caixa ruim (atual e falta de perspectiva),
custos insustentáveis, (ii) endividamento – ausência de linhas de crédito,
riscos de recuperação judicial ou falência, (iii) pouca governança e falta de
expertise em gestão, principalmente em crises, (iv) informações - muitos
fornecedores carecem de ERP sofisticado sistemas e ferramentas de inteligência
de negócios, com dados não confiáveis e, resultados imprecisos, (v) tecnologia
e base de ativos - equipamentos antigos e falta de recursos para investir em
P&D.
É comum vermos fornecedores destas
cadeias confiarem aos clientes a função de financiar suas necessidades de fluxo
de caixa, uma vez ao se encontrem em situações críticas. Quanto mais dependente
do fornecedor, mais caro será ajudá-lo a sair de uma situação de crise.
Portanto, as empresas principais das suas cadeias de valor devem conhecer a
condição e o status de seus fornecedores para evitar ficarem em posições
frágeis. Os gestores de tais empresas precisam desenvolver um relacionamento
próximo com os fornecedores e compreender profundamente todas as opções
disponíveis, caso seus fornecedores tenham problemas.
A questão é se há uma maneira de
aumentar o nível de análise preditiva, para evitar interrupções de produção e
acomodações financeiras onerosas. Examinar puramente os KPIs financeiros, de
qualidade e de entrega é superficial e não permite antecipação e mitigação de
riscos. Um mergulho em outros aspectos-chave do fornecedor só pode ser
alcançado com gestão ativa de risco do fornecedor (o que chamamos em inglês de Supplier Risk Management).
De acordo com o MIT Sloan Management Review,
a maioria dos gestores sabe que deve proteger suas cadeias de suprimentos, mas
poucos agem para mitigar os riscos fazendo pouco para evitar incidentes ou
mitigar impactos. Alguns desastres naturais/ biológicos nos últimos anos
causaram interrupções em cadeias de suprimentos e destacaram vulnerabilidades
dessas redes integradas.
Os gestores deveriam saber proteger suas
cadeias de abastecimento de interrupções, mas as soluções mais óbvias, como
aumentar os estoques, adicionar capacidade produtiva em locais diferentes e ter
vários fornecedores, podem não ser as mais eficazes. Apesar das organizações
reconhecem que seus fornecedores são vulneráveis, carecem de know-how para agir e
normalmente implantam processos reativos e não preditivos.
Apesar de 66% das organizações estarem
preocupadas com os riscos da sua cadeia, apenas 40% realizam avaliações de
risco (ainda assim esporadicamente ou após um evento crítico). Além disso, 65%
das organizações têm baixa visibilidade dos fatores de risco nos fornecedores
Tier2 e Tier “n” (ou seja, fornecedores indiretos que causam tanto risco quanto
os diretos).
Consequentemente, 77% das organizações
entrevistadas pelo MIT
tiveram interrupções significativas em sua cadeia de suprimentos nos 2 anos
anteriores à pesquisa. De acordo com a Anual
Supply Chain Today de 2014, 24% das empresas relataram que sua
marca e reputação foram prejudicadas após uma interrupção na cadeia de
suprimentos.
Embora a interrupção seja um problema
comum, várias organizações não conseguem determinar com antecedência as
repercussões de uma interrupção e os gestores só começam a fazer perguntas
depois de enfrentar o problema, e aí, já pode ser tarde demais. O que fazer pra
evitar esse tipo de situação?
Definir o nível de risco e proteção
desejados, mapeando possíveis problemas relacionados aos fornecedores e a
probabilidade de causar interrupções futuras. Após a identificação, definir um
plano de ação para resolvê-los antes que se tornem problemas reais, priorizando
pela urgência.
Abordar antecipadamente permite projetar
o risco, estando em uma posição favorável no caso de ruptura. A principal
vantagem da predição é o tempo de resposta. O curto tempo ameniza os danos. A
preparação para um evento de interrupção, por exemplo, 90 dias antes, é mais
favorável do que a preparação para a interrupção na véspera da mesma.
Além de examinar resultados financeiros
históricos, ratings de crédito, tendências de qualidade, tempo de entrega, de
giro de estoque, contas a pagar e a receber, é importante reconhecer os sinais
de desempenho financeiro futuro. Da mesma forma, é importante conhecer a gestão
de caixa e a cultura de caixa do fornecedor, pois indicam a capacidade em
enfrentar desacelerações econômicas e eventos de crise. É importante
desenvolver um processo de monitoramento para coletar dados do fornecedor e
avaliar a saúde financeira continuamente, compreendendo os gatilhos para
interrupções, antes que as mesmas ocorram.
Também ajuda aprender com eventos
passados (o que aprendemos com a crise atual?), criando contingências (plano
tático para cenários de maior probabilidade), ter um "Plano B" e
pensar holisticamente (compreender os elementos macro afetando os negócios).
Você deve monitorar seus fornecedores:
(i) avaliar o desempenho financeiro (ii) analisar os KPIs, como qualidade e
tendências de preços, (iii) identificar novos fornecedores, (iv) solicitar que
os fornecedores compartilhem informações (pré-condição contratual) e (v)
desenvolver perfil de risco de cada fornecedor. Identifique os problemáticos:
entenda os problemas e as principais causas e use as informações de
monitoramento para determinar as áreas mais prováveis de perigo. Você pode
categorizar seus fornecedores de acordo com alguns graus de stress percebido.
Baixa performance: (i) redução nas
receitas, (ii) perda de participação de mercado, (iii) crescimento lento, (iv)
margens deterioradas, (v) demissões de pessoal, (vi) questões de qualidade e
tempo, (vii) receitas concentradas em poucos clientes. Problemático: (i)
restrições de capital de giro, (ii) redução do capex e opex de manutenção,
(iii) inadimplência em covenants
de dívida e “paredes de dívida”, (iv) perdas operacionais, (v) fluxo de caixa
negativo. Em crise: (i) acesso limitado a dinheiro novo, (ii) pedidos de
antecipação de dinheiro, re precificações e condições de pagamento, (iii) venda
de ativos (às vezes essenciais), (iv) restrições de caixa, (v) falha em cumprir
as dívidas atuais.
Com base no grau de dificuldade e nas
opções disponíveis, determine um plano de ação (recursos, antecipar dinheiro,
aumento de preço, aporte de dinheiro, aquisição, empréstimo) e estabeleça uma
equipe para implantá-lo.
Há várias maneiras de endereçar um
fornecedor nessas condições e, antes de abordá-lo, você deve entender questões
operacionais: (i) nível de estoques nos fornecedores e na sua fábrica, (ii)
viabilidade de aumento de estoque (custo, armazenamento), (iii) propriedade dos
ferramentais facilidade de recuperá-los, (iv) existência de outros fornecedores
substitutos (custo, complexidade e volumes), e questões estratégicas: (i)
propriedade intelectual, (ii) nível de dificuldade financeira, (iii) histórico
de relacionamento com o fornecedor e experiencia da gestão desse fornecedor,
(iv) perspectivas de geração de caixa.
Com base no acima mencionado, as ações
que você pode realizar são: (a) arrumar um novo fornecedor: disponíveis com
baixa complexidade/ transição rápida, com os mesmos custos (ou aumento ajustado
ao risco). (b) apoio financeiro: se a situação pode ser resolvida com
eficiência e dinheiro adicional, invista capital e contrate especialistas para
melhorar as margens do fornecedor, se a probabilidade de realização for alta,
pois pode ser apenas uma correção temporária para problemas. (c) sugerir um
M&A: se o apoio financeiro não for suficiente, você pode buscar compradores
com solidez financeira para o fornecedor. (d) adquirir o fornecedor: se as
alternativas acima não forem possíveis, você pode considerar a aquisição para
evitar interrupções.
A passagem de um modelo de operação
verticalizado para um terceirizado influenciou a organização de diversos
setores e alterou a dinâmica do poder de barganha. Algumas indústrias já têm
mais de 80% de sua cadeia de valor fornecida por terceiros. Empresas
multinacionais contam com fornecedores globais e locais, cuja capacidade de
entrega está sujeita a riscos sistêmicos e intrínsecos.
Para evitar interrupções, o tempo é
mandatório, e você deve ser capaz de identificar e resolver problemas prováveis
antes que se tornem problemas reais. Monitorar fornecedores, com ferramentas e
indicadores adequados, pode reduzir drasticamente o risco associado de perda de
receita e reputação. Além disso, existem estratégias adequadas para cada nível
de stress de
fornecedores, que devem ser implementadas de acordo com os objetivos da sua
empresa e a relevância do fornecedor.
*Estevão Rocha é professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE), reestruturador de empresas pela KPMG e IVIX, diretor da G4S (LSE) e associado no private equity Artesia. Assessorou mais de uma centena de empresas.
Nenhum comentário