Amor de Dog
Marco Antonio Spinelli *
Eu nem sabia da
existência ou do canal do influencer digital Jesse Koz e seu cachorro, o Golden
Retriever Shurastey (uma brincadeira com a música do The Clash – Should I stay
or Should I go? – Shurastey ou Shuragow?). O rapaz vendeu tudo o que tinha,
comprou um Fusca 78 e saiu pelo mundo com a cara e a coragem, rodando quase
vinte países com seu incansável companheiro, Shurastey.
Na sua última aventura,
estava indo na direção do Alasca quando bateu seu carro de frente com uma SUV.
Jesse e Shurastey morreram instantaneamente. As fotos dos dois em vários
lugares do planeta encheram a internet nos dias seguintes. Foi aí que eu, como
muita gente, tomei conhecimento da aventura dos caras. A imagem sorridente do
Jesse do lado do infinitamente de boa Shurastey doeu no coração.
A dupla do balneário
Camboriú vai ser homenageada com um Memorial em pista de passeio de cães da
cidade. Uma homenagem aos laços profundos e ancestrais entre o homem e seu fiel
companheiro.
Um cara falou, em um
Congresso de Neurociências, que os cachorros não amam os homens. Tem esquemas
cognitivos de afiliação e obediência, mas não é amor. Quase perguntei se a mãe
gostava dele ou tinha laços culturais de afiliação e cuidados com a transmissão
do genoma. Que vontade de pagar de bacana. Ou de não entender de amor, nem de
dogs.
Cachorros tem uma prega
na testa que os lobos não tem, por isso olham de um jeito quase humano. Já deve
ter ficado claro aos leitores que eu sou super cachorreiro, e escrevo essas mal
tecladas palavras com as duas bebês aqui perto. Jackie Tequila, a mais velha,
me olha com olhar quase humano quando está na hora da comida ou do rolê na rua.
Bella, a caçula, foi adotada de um lar onde sofreu alguns abandonos de quintal
e prováveis descuidos. Ela é medrosa e comemora a nossa volta para casa como se
estivesse vendo o Papai Noel.
A psiquiatra Nise da
Silveira, nos anos 40 do século passado, introduziu nos cuidados com os
pacientes psiquiátricos a presença fiel e serena dos cachorros de rua. Os
pacientes melhoravam de maneira surpreendente, já que eram entendidos como
pacientes crônicos e incuráveis. Até o final de sua vida, Nise sempre esteve
cercada por seus cachorros. O que diriam os haters e os supremacistas de hoje
dessa infinita delicadeza entre homem e animais?
Os dogs tem um tipo de
afetividade muito parecida com os bebês. Já vi muita gente com Depressão, em
quadros mais ou menos graves. Temos o instinto quase coletivo de afastamento de
uma pessoa que está deprimida. Nossos instintos entendem esse estado de baixa
energia como uma infecção ou algo perigoso. Só crianças e cachorros fazem o
certo com quem está deprimido, que é ficar perto e encontrar uma ressonância
afetiva. A Neurociência tem um nome para isso, que é a Ressonância Límbica. É a
capacidade que os mamíferos tem de entrar em uma frequência semelhante, do
ponto de vista do afeto, com outro mamífero. A capacidade de estar perto e
tentar ajudar alguém que está em dificuldades. O amor do dog, como falou o
Neurocientista, não é igual ao humano, não é processado cognitivamente. É antes
uma capacidade de entrar em ressonância com a emoção e o estabelecimento de uma
proximidade, de um Tamo Junto que os mamíferos acionam quando o grupo precisa
de proteção mútua ou cuidado.
Bella me emociona
particularmente, por ter visto nela a mesma cura amorosa que eu vejo com os
pacientes. Bella tinha uma espécie de reação de Pânico com gritos, pessoas
novas ou homens desconhecidos. Sua reação de medo sempre foi o de tremores e
perda de controle da urina. Com o passar do tempo, foi mudando de um tipo de
vínculo Inseguro para Seguro, hoje tem mais confiança em seu ambiente e na
vida. Na prática clínica, é também longo o caminho para cicatrizar feridas e
refazer o vínculo com a vida. Parar de se castigar pelo o que os outros
fizeram. Parece estranho de se pensar, mas preste atenção quanta gente se odeia
pelos erros que outras pessoas cometeram, sobretudo nos anos iniciais de suas
vidas.
Olho para a foto de
Jesse Koz e Shurastey e sinto uma pontada pela perda de caras que eu não
conheci, mas também pelo mistério de terem vivido juntos os momentos mais
incríveis de suas vidas e terem morrido também juntos. Parecem quase a mesma
pessoa.
(Termino o texto com
uma lágrima de canto. Bella chega perto e me dá uma lambida).
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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